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Resenha: Titãs - Nheengatu

Titãs volta à boa forma em disco pesado e recheado de letras bem construídas sobre temas difíceis.

Resenha: Titãs - Nheengatu

EXCLUSIVO: Ouça o novo álbum do Titãs, "Nheengatu"

O Titãs é uma das maiores bandas do rock brasileiro e esse posto foi conquistado através de uma série de grandes discos em um caldeirão de talentosos músicos e compositores que criaram verdadeiros hinos sobre a vida do brasileiro nos Anos 80 e 90.

Ao final dos Anos 90 e durante os Anos 2000 a banda voltou a aparecer nas grandes mídias com melodias e letras de amor que separaram a carreira da banda entre duas grandes fases, a de protesto, com o dedo na ferida, e outra onde o grupo se viu entre grandes hits radiofônicos que fizeram tanto bem para o grupo quanto serviram para afastar boa parte da base de fãs que os Titãs ganharam desde o público mais genérico do rock até metaleiros ferrenhos.

Da primeira, muito provavelmente o disco mais importante da banda é Cabeça Dinossauro, de 1986, que veio ao mundo em um momento conturbado tanto do planeta quanto do país.

Enquanto não se sabia muito bem o que estava acontecendo e o que seria do futuro, os Titãs já debatiam e criticavam, em rede nacional para milhões de pessoas, o capitalismo, o governo, a polícia e o estado de letargia da população.

Após um punhado de canções de amor e, muito provavelmente também inspirados pelos protestos que tomaram as ruas do Brasil em 2013, os Titãs resolveram voltar com um disco de nome estranho e uma espécie de Cabeça dos tempos modernos na forma de Nheengatu, décimo oitavo álbum do grupo.

Assim como no disco de 86, os Titãs voltaram a se inspirar em obras de arte consagradas para a concepção do álbum, e seu nome vem da palavra indígena que significa “Língua Geral”, um apanhado dos vários diferentes dialetos indígenas feito pelos jesuítas no século XVII para facilitar a comunicação entre portugueses e os locais. Segundo a própria banda, a ideia foi contrapor a língua criada para favorecer o entendimento com a arte da Torre de Babel na capa, uma obra destruída pela falta de entendimento. Tudo isso para simbolizar o estado atual do Brasil.

Abrindo o álbum com “Fardado”, a banda mostra através de riffs pesados e um soco logo de cara que não está brincadeira, gritando sobre como os policiais que tanto oprimem as manifestações também deveriam estar lutando por seus direitos nas ruas, já que também são explorados. O ouvinte mais desavisado muito provavelmente nem vai perceber que a voz é do mesmo Sérgio Britto da balada “Epitáfio”, mega hit de anos atrás.

“Mensageiro da Desgraça” seria uma grande faixa de abertura caso a banda não tivesse optado por mostrar todo o seu revigorado peso logo na canção citada acima. Com uma bela construção instrumental que serve de pano para a narrativa de Paulo Miklos sobre como ele “está pronto para lutar na selva de concreto” pois cansou “da fome, do crack, da miséria e da cachaça”, a faixa é definitivamente uma trilha sonora para os brasileiros que resolveram dar a cara à tapa nas ruas como forma de dizer que não aguentam mais todas as injustiças desse país.

A primeira participação de Branco Mello nos vocais vem através da terceira faixa, “República dos Bananas”, uma composição do próprio em parceria com Angeli, Hugo Possolo e Emerson Villani, e um retrato irônico de todas as personalidades que habitam o Brasil, sendo possível inclusive traçar um paralelo com as redes sociais, onde todo mundo tem opinião para tudo mas pouco faz. Com um refrão que diz “Calúnias sociais / Seus tipos bacanas / Bundas e caras / Da República dos Bananas”, sobra até para um dos autores da canção, com “Angeli, ex-cartunista, porco e deplorável.”

Sérgio Britto volta ao microfone em “Fala, Renata”, canção que faz referência a tantas outras lançadas nos anos 60 e 70 com nomes de mulher e que focavam todas as suas forças em uma pessoa, repetindo seu nome à exaustão. A ideia aqui, de forma semelhante com a canção anterior, é falar sobre pessoas que falam mas não têm conteúdo, com um riff pesado, uma guitarrinha com a cara do Titãs nos anos 80 e até uma menção ao famoso “cala boca” do rei Juan Carlos, da Espanha, dirigido ao então presidente da Venezuela, Hugo Chavez, em 2007.

Quem faz uma deliciosa aparição no disco é Arnaldo Antunes, ex Titã que trilhou uma carreira solo baseada em suas fortes letras e ajudou Paulo Miklos a compor “Cadáver Sobre Cadáver”. O resultado é uma construção genial sobre a vida e a morte, sobre como “a foice não se sacia” e as pessoas “morrem na guerra ou na paz, de fome ou de anorexia.” Instrumentalmente a canção começa com diversas camadas de vozes, guitarras dedilhadas e baterias potentes até chegar no refrão mais uma vez distorcido e com um riff marcante. Como em tantos outros bons momentos do álbum, a banda sabe alternar melodia e peso de maneira bastante competente.

Peso esse que deve ser de mais ou menos uma tonelada ao meio do disco quando vêm as liricamente densas e pesadas “Canalha” e “Pedofilia”, a primeira um desabafo de Walter Franco regravado aqui com um belo arranjo atrás da voz característica de Branco Mello e a segunda uma declaração bastante clara de um caso de pedofilia e assédio sexual do ponto de vista da vítima. Sérgio Britto volta a mostrar seus berros que tanto ouvimos em Cabeça Dinossauro mais uma vez e a banda mostra, como se ainda fosse necessário, a coragem de falar, em música, sobre um assunto que as pessoas têm tanto medo de abordar.

“Chegada ao Brasil (Terra à Vista)” tem toda a cara e jeito de andar do rock dos anos 80 lembrando, não apenas os bons tempos dos Titãs, mas também bandas como Ultraje A Rigor em alguns momentos e é outra parceria de Branco Mello com Aderbal Freire. Em um trecho que diz “Tem caça cabaça cachaça trapaça / Mordaça arruaça vidraça / Desgraça raça pirraça” é impossível não se lembrar dos vocais rápidos de “Igreja”, mais uma vez de Cabeça Dinossauro.

“Eu Me Sinto Bem” é mais uma incursão dos Titãs no mundo do ska, assim como no mega hit “Sonífera Ilha”, presente nos shows da banda há tantos anos, e fala sobre um cidadão que se sente bem simplesmente por andar na rua. Sem “nada pra comprar, nem pra trocar a pilha”, mostra um lado entusiasmado e, por que não, esperançoso de um personagem não muito visto durante o resto do disco.

Abordando outro assunto polêmico, Sérgio Britto compôs “Flores Pra Ela”, em parceria com Mario Fabre, fazendo um paradoxo muito interessante do título que parece carregar uma canção de amor mas na verdade fala sobre a violência contra a mulher e o tratamento que muitos homens dão a elas como um objeto. Com riffs e ritmos cheios de influências brasileiras, a música alterna entre guitarras limpas e distorções.

“Não Pode” não apenas tem a cara da banda como também irá te lembrar de “AA UU”, outro som poderoso de Cabeça Dinossauro, e traz uma série de construções feitas por Sérgio Britto com a expressão que dá nome à canção, refletindo a vida em casa, no trabalho, na sociedade.

Chegando ao final do disco, se estava faltando falar sobre a religião, não falta mais quando aparece “Senhor”, poderosa canção que se relaciona com os instrumentais de Cabeça Dinossauro mais uma vez e a mais uma canção do álbum, “Igreja”, mas ao invés de dizer explicitamente que “não gosta de Igreja”, aqui a banda brinca com uma espécie de oração que mostra bem o comportamento de boa parcela dos religiosos do país.

Com frases como “Senhor! Não me livre do pecado, me livre da culpa” e “Não me livre do inferno, me livre do tédio”, Tony Bellotto aborda o assunto com um dos pilares da religião, a oração, mas adaptando as tradicionais frases por pedidos que, muito provavelmente, se passam nas cabeças dos fiéis, em silêncio.

Inspirado em Cartola e Pixinguinha, Paulo Miklos abre “Baião de Dois” com “O mundo é um moinho / A vida é um buraco” em mais uma música que faz questão de trazer os elementos da música popular brasileira ao rock do Titãs, tanto no instrumental quanto nas letras, cheia de palavrões e referências.

Pra encerrar os trabalhos, “Quem São Os Animais” é mais uma crítica dura e direta a respeito de questões sociais principalmente no que diz respeito às minorias.

“Te chamam te viado / Te chamam de macaco / E inventam o teu passado” são algumas das frases que eliminam quaisquer possíveis dúvidas sobre a vontade, a coragem e a naturalidade com as quais o Titãs abordou temas polêmicos e atuais em seu novo disco de estúdio.

Nheengatu é um retorno dos Titãs a um dos períodos mais criativos e frutíferos de sua carreira. Mesmo com mudanças significativas em sua formação durante todos esses anos, Sérgio Britto, Branco Mello, Tony Bellotto e Paulo Miklos escreveram um disco que tem a cara do Titãs em seus instrumentais e letras geniais e reflete a coragem que o povo brasileiro mostrou nas ruas ao se manifestar contra tudo que vem sofrendo há anos.

Após uma série de singles vazios e bandas oportunas que tentaram se beneficiar dos protestos para divulgar seu som na Internet, um dos nomes mais importantes da música desse país criou, naturalmente, uma grande obra pós-protestos, que está aí para ser absorvida e definitivamente entrará na história do rock nacional, se já não o fez.

Você pode ouvir o disco clicando aqui.

Nota: 9/10