A madrugada pairava sobre o ar quente de Salvador quando o BaianaSystem entrou no palco. Era o primeiro dia do Festival de Verão de Salvador 2016, o mais tradicional festival baiano, realizado pela primeira vez em dezoito anos na Arena Fonte Nova. O grupo, uma das maiores e melhores surpresas da atualidade, era o único artista baiano a se apresentar naquela noite, antecedidos por Nando Reis, Capital Inicial, Natiruts, Planet Hemp e O Rappa. Eram também os únicos artistas sem nenhum vínculo, passado ou presente, com grande gravadora. Não aparecem regularmente em programas de TV, são raridade em rádios ou playlists populares. E ainda assim, fizeram o grande show do festival, capazes de provocar verdadeiras convulsões coletivas na massa ensandecida.
No palco, o Baiana torna-se mais que uma banda. A formação passa longe da tradição: guitarra, baixo e percussão unem-se a guitarra baiana, clarinete e dois DJs para recriar, ao vivo, a mistura sem igual do grupo. Aos instrumentistas unem-se o vocalista Russo Passapusso, o rapper Vandal, B Negão – vocalista do Planet Hemp e parceiro de longa data do Baiana – e a arte gráfica de Filipe Cartaxo, responsável pela identidade visual mais bonita e imponente da música brasileira, hoje.
Ver o BaianaSystem em ação é um privilégio, é enxergar através de binóculos uma ebulição artística e social ímpar. Especialmente numa noite quente em Salvador, onde todo grave vira um salto, todo refrão vira bloco, todo suingue vira canto. Onde o refrão de “Duas Cidades” (“Cidade Baixa, Cidade Alta / em que cidade que você se encaixa?”), faixa-título do segundo álbum da banda, lançado em março, ecoa não só nas vozes, mas nos corações de quem vive o dia-a-dia do abismo entre classes na primeira capital do Brasil.
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Duas Cidades, o melhor álbum nacional do ano no Tenho Mais Discos Que Amigos!, sintetiza e pluraliza o espírito do que a banda propaga desde a fundação, em 2010: a reapropriação da música baiana enquanto cultura de rua, reforçada pela adição de elementos dos bailes de rua, das aparelhagens, das festas de todas as periferias. Do pagode baiano ao dubstep inglês, há espaço para toda a música que um dia foi marginal, que foi plastificada e desfigurada pela obsessão capitalista. Ali, os silenciados têm espaço de fala, de grito, de manifesto. Os invisíveis ganham o palco. O coletivo oprime a individualidade.
Naquela noite, cerca de meia hora antes do show, tive a oportunidade de conversar com Russo Passapusso e com Roberto Barreto, comandante da guitarra baiana e um dos maestros do BaianaSystem. Em conversa exclusiva, que você confere a seguir, a dupla refletiu sobre as catarses de 2016, o impacto da repercussão do grupo na produção futura e nas consequências sociais de se criar arte a partir da contravenção.
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2016 foi um ano intenso pra vocês. O Duas Cidades saiu com repercussão nacional, enquanto o país atravessa um caos político, uma questão que conversa muito com os temas que vocês abordam. Como vocês avaliam o ano para o BaianaSystem, dentro desse contexto?
Roberto Barreto: Quando a gente definiu que o tema do disco seria “Duas Cidades”, essa coisa de “cidade alta, cidade baixa”, essa divisão que acontece nas cidades, no Brasil, a gente queria que a nossa música tivesse de alguma maneira a capacidade de transformar e tocar as pessoas. A gente sentia que era a única coisa que a gente podia fazer naquele momento, com tudo isso que a gente tá vivendo. A gente tá chegando ao final do ano e não para de se surpreender com as notícias, parece que não pode piorar e piora. Mas a gente ficou muito feliz que o Duas Cidades veio com toda essa força, em como a gente mostrou isso pro resto do país e com a forma como as pessoas receberam o nosso som. Aqui no Brasil e fora daqui também, o tema do disco foi muito forte em 2016.
Russo Passapusso: É engraçado que as letras vão ficando mais atuais, né? A gente faz as letras meio que querendo traçar um perfil do que aconteceu pra registrar, pra alguém lembrar. Mas na real não precisa lembrar, porque continua atual. Hoje parece coisa do surrealismo, mesmo. Eu comecei a perceber que tem muitas interrogações nas nossas letras, que elas sempre têm uma pergunta, coisas que a gente tava se perguntando pra entender comportamento, território, tudo isso. A gente começou pelo micro, mesmo, aqui em Salvador. Ali no centro, no Pelourinho, onde vinha gente da cidade baixa, da cidade alta, de todos os lugares, e aquilo deu conteúdo pra gente arriscar no experimentalismo do nosso som.
O conceito do Duas Cidades se aplica perfeitamente ao Brasil inteiro, hoje. Parece que são vários países dentro de um, todos muito divididos. Como vocês veem essa dicotomia política, essa falta de harmonia na sociedade?
RB: É uma divisão, mesmo. Você vê o que aconteceu com as pessoas durante o ano inteiro, amigos de muito tempo brigando, famílias brigando… É uma coisa que mexeu muito, porque é política, basicamente, mas ultrapassa a política. Eu acho que vai pra expectativa que cada um tem sobre o seu mundo, de como vive, do que quer construir, e isso tá muito evidente no mundo inteiro. A eleição nos Estados Unidos foi muito importante pra todo mundo, a questão dos imigrantes… A gente lançou uma música agora, “Forasteiro”, e tem uma outra faixa que a gente vai lançar em sequência que é “Invisível”, duas faixas que falam sobre isso. “Forasteiro” é sobre a a divisão de espaço, de território, e “Invisível” tem uma letra de Russo que fala: “você passa por mim e não me vê”. De alguma forma a gente tenta trazer essas questões pra arte, pro carnaval. O carnaval também tem duas cidades, também tem essa divisão. 2016 foi um ano que fez a gente refletir sobre isso.
O BaianaSystem se tornou uma figura muito importante no carnaval da Bahia, justamente por manter o espírito da festa, do entretenimento, enquanto tiram as cordas, redemocratizam o carnaval. Como vocês veem o carnaval da Bahia hoje, uma festa majoritariamente comercial, sem a essência que teve um dia?
RP: Eu vejo um caminho natural de renovação. Inicialmente a gente saía no carnaval e não tinha ninguém atrás, galera mandando ir embora, sem entender nossa linguagem, e começamos a perceber que nós estarmos inquietos pra compor outras coisas não vinha só da gente; os ouvidos também estavam inquietos, queriam ouvir outras coisas. Então quando você consegue fazer a música fazer parte do contexto social da pessoa que tá ali na rua, da pessoa que tá naquele bairro… A gente é muito influenciado pelo manguebeat, por Chico Science, por falar das ruas, por falar das pessoas. Hoje [10 de Dezembro, dia em que foi realizada a entrevista] é o Dia Internacional dos Direitos Humanos, é algo que já acende a gente. A galera que fazia música alternativa em Salvador não flertava com a galera do comercial, como se aquilo também não fosse nosso. Como se aquele ritmo não fosse nosso. Como se o pagode, o samba duro, o samba reggae, depois de terem sido transformados e sintetizados na coisa comercial, na cultura de massa, não fossem mais nossos. E aí tudo isso fez a curva lá na frente e voltou como expressão corporal, no cantar. Eu escrevia uma letra e falava “isso é um ragga muffin“, e alguém vinha e me falava: “não, isso é um repente”. Então isso trazia a gente cada vez mais pra nossa raiz.
A banda surgiu despretensiosamente, mas com muita vontade de realizar, e hoje vocês estão entre as principais revelações do país. De que forma a repercussão do trabalho de vocês é sentida hoje, e como ela altera o futuro do BaianaSystem?
RB: Como tudo desde o lançamento do disco pra cá, a gente tá meio que fazendo sem conseguir pensar muito, sabe? Vai fazendo. Essa coisa da gente tocar hoje depois do Planet Hemp e d’O Rappa, pra gente traz uma responsabilidade. O B Negão ficou falando pra gente: “só vocês podiam encerrar hoje, porque é em Salvador, porque vocês estão nesse momento”. A gente ainda tá tentando entender isso. Russo falou de Chico Science, mas o Planet Hemp também é uma referência incrível pra gente. O B Negão sempre foi uma referência, e depois virou parte do Baiana. Então o Baiana começa como você falou mesmo, sem pretensão, mas ao mesmo tempo tentando entender o que tava acontecendo, dialogando com o mercado, mas sem achar esse caminho. Ser o único artista da Bahia no festival hoje é muito significativo. É muita responsabilidade.
RP: E engraçado que você perguntou “e daqui pra frente?”, mas como músicos experimentais a gente não gosta de repetir os formatos do que a gente fez. Sei lá, fiz uma música “Jah Jah Revolta”, não vou fazer outra igual. Se eu for fazer uma letra que flerte com isso, ela vai entrar dentro dessa música, e aí a gente faz a “parte 2”, porque aquilo fazia sentido.
Uma continuação.
RP: Uma continuação, uma influência do soundsystem, de estar sempre ali acrescentando coisas. O que a gente pode ver pra frente é que a gente tem uma certeza agora, temos certeza de que o experimentalismo acaba sendo compreendido. Que às vezes a pessoa não entende no primeiro impacto, mas que isso que vem a longo prazo também bate de uma forma muito forte.
Vocês se sentem remando contra a corrente por fazer música independente e conquistar tudo o que vocês têm conquistado? Por ir contra a tradição que se instalou no carnaval baiano, e de estar no lugar em que estão hoje?
RP: O nome do nosso trio no carnaval é Navio Pirata (risos). Nos primeiros anos as pessoas não sorriam, era uma coisa muito difícil. Na real, tá tudo acontecendo com delay. Você produz aquele disco, faz aquelas coisas, e continua produzindo mais música. De repente, aquilo que você produziu ali atrás tá sendo absorvido agora, porque é a longo prazo. As pessoas [vão ao show do BaianaSystem] e falam: “já conheço essa música”. Por quê? Porque eu escrevo uma letra [nova] e começo a cantar ela por cima de um instrumental que já existe, eu não espero vir uma música pra gravar e depois falar “galera, essa é a nossa nova música de trabalho”. A gente não trabalha nesse formato. Então com certeza a gente tá remando contra a maré.
RB: E ao mesmo tempo em que a gente tá remando contra a maré, a gente não sabe fazer de outro jeito. Pra gente é como se o barco tivesse entrado numa corrente e funcionou, mas a gente não sabe fazer de outro jeito. Esse experimentalismo que Russo fala, que [o Baiana] tem no som, tem a ver com a nossa relação com o mercado também, sabe? Quando a gente fala no Navio Pirata, quando a gente faz os shows que a gente faz no Pelourinho, a forma com que a gente chega… A gente ganhou o Prêmio Multishow e não esperava receber aqueles prêmios, ficamos super felizes, e uma galera veio nos perguntar o porquê da gente não ir [a banda levou dois troféus, o de Melhor Disco e Hit do Ano, por “Playsom”, mas não compareceu à premiação porque tinham agendado a gravação de um clipe], e velho, a gente não pôde, nem imaginava! A gente só sabe fazer desse jeito, e graças a Deus que isso tá sendo percebido, porque na Bahia a gente precisava um pouco disso. O modus operandi que estava funcionando já não estava funcionando.
RP: E tem de abrir caminho pra tudo aquilo que faz parte. O BaianaSystem não é uma banda única. Os músicos que vêm com a gente, os amigos que estão ali, isso tudo é um movimento. A gente quer mostrar pras pessoas que aqui dentro tem um movimento forte acontecendo, e que esse mercado que ofuscava a coisa hoje em dia tá mais fraco, que esse luz não tá tão forte, que hoje dá pra entender o que estamos fazendo. A gente tem uma responsa grande, mas a gente sabe que a galera que vem junto com a gente nesse movimento é firme e forte, pé no chão.
E agora que a música de vocês alcança o Brasil inteiro, como vocês percebem o poder de mudança que a música tem, o impacto social dela?
RP: Eu sempre quis me comunicar com as pessoas. Eu pesquisava sobre soundsystem, sobre ragga muffin, sobre a Jamaica, cultura hip-hop, kuduro, e tal. E às vezes eu cantava pra pessoa que tava ali embaixo da minha janela tocando um cavaco e ela não entendia nada disso. Não tinha esses elos. De repente o BaianaSystem começou a dar esse fio da meada. De fazer com que as pessoas ouvissem o refrão de “Terapia” e percebessem o conteúdo ali dentro. O conteúdo é o principal. É o que faz a pessoa se arrepiar, entender, e o que me faz continuar escrevendo. Essa explosão de mensagem social. O BaianaSystem não é tocar, é comportamento. Os caras sempre falavam isso pra mim, “não é só a música, é o comportamento”. Como no soundsystem as pessoas falavam: “não é a gente, são as caixas de som”. Esse ponto de vista muda tudo: é o social em primeiro lugar com certeza, porque a gente quer se comunicar com o público, a gente faz parte do público.