Entrevistas

Gregory Porter fala sobre Nat King Cole, memórias musicais e o cenário do jazz contemporâneo

Um dos principais nomes do jazz na atualidade, Gregory Porter conversa com o TMDQA sobre seu novo álbum, onde recria a obra de um de seus ídolos.

Gregory Porter
Foto: Divulgação

Você sabe que um cantor deixou sua marca quando a menção a uma simples palavra traz melodias aos ouvidos – e assim é com “Unforgettable”, uma das muitas canções imortalizadas por Nat King Cole ao longo de sua curta carreira. O cantor e pianista faleceu aos 45 anos, vítima de câncer.

Mas King Cole se tornou impossível de esquecer, especialmente para o jovem Gregory Porter, que viria a se tornar um ganhador do Grammy. Já na infância, ele imaginava que era filho do cantor, morto seis anos antes de Porter nascer, e se orgulhava da voz que a mãe comparava à do cantor famoso. Quase 40 anos se passaram, e agora Gregory Porter realiza um sonho antigo: o de cantar o repertório de Cole em um álbum.

Ele próprio tem agora 45 anos e em seu novo disco, Nat ‘King’ Cole & Me, faz um resgate musical e pessoal de uma vida inteira ouvindo o rei. O cantor retorna a memórias da infância, de família e do início da carreira – como quando montou a peça que levava o mesmo título do disco, após o falecimento de seu pai, Rufus Porter.

O trabalho vem após o elogiado Take me to the alley, lançado em 2016 e com o qual segue ganhando prêmios. Conversamos com Gregory Porter por telefone sobre este novo projeto.

TMDQA!: Seu mais recente álbum é um conjunto de releituras da obra de Nat King Cole, e além de sempre ser difícil regravar grandes nomes da música, ele ainda tem um vasto catálogo que passa por diversas fases. Como foi escolher as músicas que entraram no álbum e qual foi a sua linha de pensamento para priorizar as canções que entraram no disco?

Gregory Porter: Sabe, esse disco é também uma lembrança da minha experiência familiar. Me remete a crescer, ouvir minha mãe, meus sete irmãos e irmãs, o ambiente da casa… Então eu diria que a conexão emocional com as músicas foi o mais importante pra mim. E também busquei canções que pudessem ser arranjadas lindamente por uma orquestra. A influência que Nat King Cole teve na minha carreira é muito grande, músicas como “Pick yourself up” estavam comigo sempre. E mesmo quando eu escrevo as minhas músicas, como “Don’t lose your steam”, do meu último disco, tem um pouco disso e foi uma música que escrevi para o meu filho. Eu busco escrever músicas que tragam a mesma carga emocional, então não foi uma escolha sobre quais músicas eram mais populares, e sim quais tinha uma ligação mais profunda comigo.

TMDQA!: Acho que podemos concordar que essa é uma tarefa um pouco assustadora, regravar Nat King Cole. O que fez você decidir ir adiante com esse projeto?

Gregory: Sim! Bem, era um projeto dos sonhos pra mim, eu queria fazer isso há muitos anos. É um trabalho de amor, mesmo. Eu não estou tentando imitar o Nat, mas sim prestar um tributo a alguém que significou muito pra mim. Eu canto essas músicas como se estivesse cantando as composições de alguém da minha família, e de certa forma estava mesmo, apesar dele ter falecido antes mesmo de eu nascer. É muito impactante esse poder da música. “Smile”, “Pick yourself up”, “Nature boy”, parece que foram escritas pra mim, de tão próximas que elas pareciam.

TMDQA!: Nesse disco, você canta algumas das gravações mais memoráveis de Nat King Cole, e uma que é bem marcante é “Quizas, Quizas, Quizas” (do cubano Osvaldo Farrés que apareceu no álbum Cole Español) – especialmente pra gente aqui na América Latina. Depois que você decidiu gravá-la, como foi abordar esses arranjos e até mesmo a performance? Digo isso pois estou falando com você do Brasil, e o Nat chegou a gravar algumas músicas em Português. Me pergunto se você pensou em fazer algo nesse sentido pro disco ou mesmo se já pensou em gravar uma música brasileira em outro momento da sua carreira.

Gregory: Isso é algo que está na minha lista de coisas que adoraria fazer, porque a língua portuguesa é algo tão musical! Mesmo quando eu estou em casa cantarolando Milton Nascimento ou Jobim, eu sinto essas vogais bem curvadas… É muito bonito, apesar de eu saber que não estou cantando certo! (Risos) Mas é engraçado, hoje eu conversei com veículos do Japão, da Alemanha, e todos perguntaram a mesma coisa. “Sabe, o Nat gravou em alemão também, porque você não gravou uma dessas versões?” (Risos) As possibilidades eram muitas e sei também que o Cole Español foi um disco muito popular em todo o mundo. É que “Quizas” era uma das minhas favoritas, e quanto ao arranjo, nós fizemos algo igual a minha pronúncia, que ficou entre Cuba e Argentina… Não é exatamente de um lugar só, mas é bem latino.

TMDQA!: Você comentou que você ouviu falar do Nat King Cole pela primeira vez quando sua mãe comparou sua voz à dele, e que foi buscá-lo na pilha de discos e, bem, o resto nós já sabemos! Como estamos falando sobre memória, você diria que essa gravação foi um retorno às origens pra você e te trouxe lembranças de infância?

Gregory: Com certeza. Eu acho que cheguei na música do Nat devido à ausência do meu pai. As letras dele, o estilo e até mesmo as fotos me faziam imaginar que aquele era o meu pai. Claro que não era real, mas na minha cabeça de menino de 6 anos, era a mais pura verdade. Não que ele fosse casado com a minha mãe, mas era só natural pra mim pensar que o Nat King Cole era meu pai, e que ele estava cantando pra mim. Então tudo isso deu uma profundidade maior quando eu o ouvia, se tornou muito mais que música pra mim. “I wonder who my daddy is” eu ouvi pela primeira vez com Freddy Cole, irmão do Nat, e quando eu canto sinto que estou também cantando a história da minha família, pois o meu pai não estava presente também. Algumas pessoas dizem, “ora, que ideia esperta!” e eu digo que não é, não do ponto de vista de marketing. É só algo que significa muito pra mim, é um projeto de uma paixão minha.

TMDQA!: – A gravação do álbum contou com um time de primeira que tem o arranjador Vince Mendoza (vencedor do Grammy 6x), o pianista Christian Sands, o baixista Reuben Rogers e o baterista Ulysses Owens. Além desse núcleo, você ainda teve colaboração da London Studio Orchestra. Que impacto os músicos tiveram na hora de reimaginar e executar as canções de Nat King Cole e como você sentiu que o resultado mudou por conta deles? Se tratando de um projeto tão pessoal, o que acha que eles trouxeram para contribuir?

Gregory: Uau… Bom, o Nat era um pianista brilhante, e eu não toco piano. O Christian trouxe essa beleza, exuberância e habilidade incrível. A orquestra elevou a minha performance, como é comum orquestras fazerem com cantores. Parecia que a minha voz estava surfando uma onda, pois os arranjos a elevavam. Foi uma experiência incrível. A seção rítmica também sabia exatamente o que fazer. Eu fico muito confortável com a minha banda, são músicos maravilhosos. Mas estávamos em turnê há mais de três meses sem parar e eu precisava dar uma folga pra eles. Então fui para Londres por alguns dias, enquanto os caras descansavam um pouco, e trabalhei em estúdio. Essa experiência de camaradagem entre nós foi realmente recompensadora.

TMDQA!: Bem, as músicas que ouvimos quando jovens têm um impacto grande nas nossas memórias depois que crescemos, porque se tornam esse espaço seguro de nostalgia para o qual podemos sempre retornar – especialmente nessa época tão sombria. Como estamos lidando com tanto ódio e intolerância atualmente, você acha que esse disco pode trazer um novo fôlego às pessoas, talvez por remeter a uma época em que as coisas pareciam um pouco mais simples?

Gregory: Sabe, tenho pensado nisso. Há um motivo por que eu gravei “When love was king”. Há um motivo pra ter no disco “Smile”, “Nature boy”, com aquele último verso maravilhoso, “the greatest thing you’ll ever learn/is just to love and be loved in return”. A música é mais do que isso, é a história da nossa cultura, da nossa espécie, independente se somos negros, brancos, latinos, asiáticos. A energia que ela pode trazer é inegável e eu espero que essas canções falem diretamente com as pessoas sobre amor. Espero que nossos líderes mundiais ouçam essas músicas e se deixem ser tocados por elas. Não sei se irão, mas é a minha esperança.

TMDQA!: Muitas pessoas acreditam que os grandes nomes do jazz ficaram no passado, mas especialmente nos últimos anos temos visto grandes músicos de jazz se tornarem mais e mais conhecidos, e também ousando mais criativamente. Como você vê essa cena atual do jazz e como você diria que seu trabalho se encaixa nela, considerando que você traz elementos de soul, de gospel e de blues pra sua música?

Gregory: É verdade. Acho que o gênero está se abrindo. O jazz já é um gênero bastante amplo, o guarda-chuva de definições do jazz é enorme. E eu gosto e tenho orgulho de fazer parte disso. Gosto do fato de que a minha expressão mais soul é válida e apreciada por fãs de jazz do mundo todo. Eu pensei que talvez essa fosse a hora mais propícia para mim, porque antes disso, houve momentos na minha carreira em que ouvi “isso não é jazz puro, você é um cantor de R&B”. Pra mim, isso é um elogio – assim como seria se me chamassem de “cantor de blues”, “cantor de soul”, “cantor gospel”. Mas sinto que os ouvintes de jazz estão se abrindo para seus primos mais próximos. É curioso, o jazz sempre foi aberto a outros estilos, como música indiana, folk e tudo mais. Porém, com o gospel, o soul, o blues, que são seus parentes mais próximos, isso não acontecia. Entende o que digo?

TMDQA!: Sim, claro.

Gregory: Isso está mudando um pouco.

TMDQA!: Que ótimo. Só pra encerrar, o nome do nosso site tem a ver com a nossa proximidade com as músicas que nos acompanham ao longo dos anos. Sempre perguntamos aos artistas quais são os discos das suas vidas, porém, como estamos falando tanto do Nat King Cole, queria saber qual é o disco dele que mais te impactou e mais esteve presente na sua vida.

Gregory: “Love is the thing” é um que… É um disco que está comigo há muito tempo. “After midnight” também, eu colocava sempre, mas “Love is the thing” eu ouvia antes. E essa é a coisa mais legal da música do Nat: à medida que vou envelhecendo, a música ganha outro significado, eu passo a entender ela de outra maneira do que quando tinha 10, 15, 35 anos. E ela esteve presente comigo em muitos momentos, passando pela morte da minha mãe, o nascimento do meu filho, o casamento com a minha esposa… Essa certamente foi a trilha sonora da minha vida. É um privilégio pra mim poder dar a minha interpretação a canções que foram tão importantes pra mim.