Agosto de 2008. Há dez anos uma banda paulistana chamada Rancore lançaria seu segundo disco de estúdio, Liberta, e entraria rapidamente para o grupo dos nomes mais importantes do hardcore no país.
De forma independente e incorporando tudo que havia vivenciado nos últimos dois anos, após o lançamento do disco de estreia Yoga, Stress e Cafeína, o Rancore moldou um som bastante próprio que se destacou entre os pares da época pela forma como, ao mesmo tempo, usava a agressividade do punk rock para falar sobre temas dos mais sérios e pessoais com melodias e letras incríveis.
Não à toa, o disco rapidamente tornou-se o favorito de muita gente que vivia a cena e foi parar até na pele dos ouvintes, com uma legião de fãs do Rancore tatuando o logotipo da banda por conta de suas canções.
Dez anos após o lançamento de Liberta, nós conversamos com integrantes da banda que gravaram o disco a seu respeito para tentar contar um pouco da história do álbum.
Origens
Teco Martins, vocalista da banda, nos contou sobre o período em que o Rancore compôs as canções que fariam parte do Liberta, e lembra quais vieram primeiro e como tudo surgiu:
Desde que lançamos ‘Yoga, Stress e Cafeína’ começamos a fazer muitos shows e turnês, e logo começamos a querer tocar novas músicas. A primeira música a ser composta para esse o novo disco foi ‘Escadacronia’, que já carregava uma outra estética musical e poética em relação ao disco anterior e que de certa forma foi o guia para onde queríamos levar nosso som. A partir de então foram aparecendo músicas como ‘Liberta’, ‘Temporário’, ‘Bem Aqui’, ‘Voar’, ‘Canto Gritando’, ‘Quarto Escuro’, ‘Castelo’, ‘Respeito é a Lei’, em ensaios de composição que fazíamos durante a semana (nos finais de semana estávamos em turnê com nosso primeiro disco e íamos testando e lapidando essas músicas novas).
Todas as músicas surgiram de uma ideia na guitarra do Henrique Uba, o Candinho, e dele se estendia para a banda que na época era formada também por mim, pelo Ale Iafelice na bateria, Marcelo Barchetta ‘Cabelêra’ na guitarra e ‘Alemão’ (André Mindelis) no baixo. A cada ensaio íamos coletivamente evoluindo essas ideias iniciais e as músicas e o disco iam ganhando forma.
Foi o primeiro disco profissional que participei na minha vida, onde nos preocupamos em gravar pré-produções e tivemos uma equipe excelente ao nosso lado. Guilherme Chiapetta do Cafuá e África lá em Casa foi o produtor musical, e somou muito pro resultado final também.
Alê Iafelice, baterista da banda, falou sobre como essa fase de transição foi importante para a banda e também deu uma boa noção de como as gravações começaram:
Foi uma fase muito importante e marcante, estávamos consolidando uma nova formação da banda, e integrantes que, assim como eu, não tinham participado tanto do processo de composição do disco anterior, puderam colocar sua personalidade e energia.
O desenvolvimento das composições foi feito na maioria das vezes por todos juntos no estúdio, e tivemos MUITOS e MUITOS ensaios para deixar tudo tinindo, ralando bastante até chegar no resultado que gostaríamos para poder enfim entrar em estúdio.
Sempre terei um carinho bem grande por toda essa fase, aquela saudade boa às vezes bate, mas a vida segue e acho que temos que apreciar e viver o presente, pensar que o que passou é apenas aprendizado e experiência pra usarmos no agora.
André Mindelis, o “Alemão” falou sobre o orgulho que sente de ter participado dessas gravações:
Lembro de momentos de stress na composição devido a divergências entre alguns membros, mas acho que isso faz parte. Às vezes até ajuda no processo. Estávamos todos ansiosos para ouvir o que sairia e também muito focados em dar o nosso melhor para registrar algo que nos orgulharia depois.
Tenho muito orgulho de ter participado, acho que foi algo novo e diferente do que a maioria das bandas estavam fazendo na época aqui no Brasil e reconheço um bom nível técnico e criativo no resultado nele.
Candinho, guitarrista que começou as ideias de boa parte do disco antes do grupo lapidá-las, também falou a respeito:
A gente tinha feito as músicas do disco passado meio rápido e fomos arrumando elas no estúdio. Para o Liberta a gente quis chegar mais preparado. Rolou bastante ensaio e chegamos com o disco já todo acertado; isso não é necessariamente bom mas na época era a forma que queríamos fazer e deu certo. Sinto falta principalmente da dinâmica de banda, de um grupo de amigos construindo algo junto, de uma ingenuidade maior, pelo menos minha. Era algo sério mas ao mesmo tempo não era.
Reconhecimento
Meses após o lançamento de Liberta, o Rancore era uma banda que tinha suas músicas conhecidas pelo público do underground em várias cidades brasileiras, e foi inevitável que os shows começassem a ficar cada vez mais frequentes, e Teco se lembra de como foi a repercussão do álbum, principalmente quanto à quantidade de público:
Foi aumentando muito rápido. Começamos a lotar casas de shows e a sermos convidados pra tocar em festivais maiores. Muita gente fez a tatuagem do símbolo da capa do disco. Tudo isso foi um pouco assustador também. Bastante energia pra lidar. Mas agradeço muito a tudo que vivi nessa fase, e que vivo até hoje porque foi um portal para que eu chegasse até aqui; muitos aprendizados e muitas amizades ganharam vida; e a partir do lançamento do ‘Liberta’ aumentamos muito nosso público e as responsabilidades para com a banda e logo veio a escolha pros integrantes entre viver somente de música ou continuar trabalhando/estudando e outras coisas. Eu, Candinho e Ale largamos outros trampos, faculdades, e até relacionamentos para ir viver a Rancore com toda intensidade necessária e o Cabeleira e o Alemão acabaram saindo da banda por não conseguirem conciliar com outros compromissos. Eles eram/são excelentes músicos e foram fundamentais para o ‘Liberta’, apesar de não terem continuado na banda. Sou muito grato a eles. Logo depois Eu, Candinho e Ale nos unimos ao Caggegi no baixo e Gustavo Tx. na guitarra e fizemos o Seiva (2011), que inclusive foi eleito o “melhor disco do ano” aqui no TMDQA! Mas aí são outras histórias…
Candinho também se lembrou da receptividade do público e ainda falou sobre como a ajuda das bandas já consolidadas na época foi fundamental para o processo, já que a reunião nos shows fazia com que os públicos se misturassem e tudo tivesse o alcance amplificado:
Foi muito bom. O que rolou foi que a gente tinha ficado muito feliz com o resultado do disco e isso somado ao fato de sermos mais novos gerou uma expectativa grande na gente quanto à aceitação das pessoas nos shows, delas sentirem o mesmo que a gente sentia em relação ao projeto, e isso foi sendo correspondido. Na época parecia um processo natural, mas é difícil essa sincronia acontecer.
Outra coisa boa desse momento foi que tivemos uma força de bandas que estavam na ativa há mais tempo, e que davam espaço pra gente tocar direto, principalmente com o Sugar Kane. E era uma ajuda muito legítima, sincera. Tocar com o Sugar Kane em Curitiba ou o Garage Fuzz em Santos na época era muito bom por vários motivos; conhecer as pessoas e aprender com essas bandas o principal, mas eu gostava também do elemento surpresa. Pouca gente ou ninguém nessas ocasiões tinha alguma expectativa pro nosso show.
Influências
As influências para a gravação do Liberta eram as mais diversas possíveis, e talvez expliquem como a sonoridade do Rancore se moldou para esse lançamento tão importante na carreira dos caras.
Enquanto Teco Martins lembrou de nomes como He is Legend, Cave In, Propagandhi e Norma Jean, também falou sobre a Bossa Nova e citou o que vinha lendo na época que acabou inspirando as letras do álbum:
Machado de Assis, Platão, Dostoiévski, García Marquez, Freud, Jung, Borges, Taoísmo, muito do punk rock em português e da Bíblia também.
Candinho falou a respeito das influências e ainda explicou a fase que passava durante a gravação do disco:
Eu ouvia umas bandas que tinham uma influência do hardcore mais recente da época mas experimentavam um pouco mais, tipo o Alexisonfire e o Thrice. Era um pouco bitolado até.
O fato dos outros caras irem numa outra direção, o Teco principalmente, que já escrevia pensando em música Brasileira, e o Chiapetta, que produziu e tinha uma bagagem e visão bem diferente, fez o disco soar menos datado e mais orgânico. O lado que soa meio datado, meio durão do disco acho que cai mais na minha conta mesmo. Mal, time!
Candinho não precisa se preocupar, porém, já que o outro guitarrista da banda, o Cabelêra, também falou sobre como vivia e respirava o hardcore:
Olha eu, vou falar por mim, eu sou hardcore até morrer, eu cresci e aprendi mais com isso do que em qualquer instituição de ensino na minha vida (risos). Sempre ouvi muito som pesado e hardcore melódico, reggae… Mas a minha formação musical passa por Michael Jackson, Madonna, Pantera, Metallica, Bad Religion, Satanic Surfers, A wilhelm scream, Propagandhi e mais.
Eu ouvia o que me mostravam e até gostava mas não pegava tanto como um norte. Até porque nessa época surgiram muitas banda que muitas hoje nem existem mais e foi uma época diferente, não sei bem explicar.
Os sons podem ter influenciado os outros da banda mas acho que foi sem querer, um amadurecimento mesmo pensando numa identidade para o nosso próprio som.
Vocais nus e Bateria de primeira
É natural que qualquer processo de composição e gravação de um disco seja marcado por diversos fatos interessantes e curiosidades que às vezes nunca chegam ao público.
Quando perguntamos por alguns desses fatos que ainda não sabíamos, Teco Martins disse que gravou todos os vocais do álbum nu (fato confirmado pelo Ale), e tanto o Alemão quanto o Cabelêra se lembraram das habilidades de Iafelice com a bateria:
O Ale gravou as baterias de uma vez sem errar, foi bizarro. Para mim a banda tinha e ainda tem ótimos músicos, mas o Alexandre é um cara diferenciado e entre tantos bons bateristas, ele estava sempre um passo acima dos demais.
Liberta na vida de cada um
Discos e álbuns marcantes impactam diferentes pessoas de diferentes maneiras.
Esse que aqui escreve, por exemplo, ouviu o álbum pela primeira vez enquanto ainda fazia rascunhos do que seria o Tenho Mais Discos Que Amigos! um dia. Foi um dos álbuns nacionais que mais coloquei pra tocar na época justamente por conta da sinceridade e da abordagem às temáticas propostas junto com a coragem de estampar, ao mesmo tempo, peso e melodia como pano de fundo para falar de todas essas questões.
Desde o seu título até canções como “Escadacronia”, a minha favorita em todo álbum, passando pela confessional “Cresci” onde Teco Martins escancara questões pessoas com as quais nos identificamos facilmente, Liberta é como um ritual de passagem, um ponto na estrada onde passamos e decidimos pelo caminho que tomaríamos dali pra frente de uma forma ou de outra, tendo a convicção de que muitos se sentiam como a gente e estariam ao nosso lado.
Quando perguntamos aos responsáveis pelo disco sobre o que o Liberta significou em suas vidas, eles disseram:
Teco Martins: “O retrato de uma fase muito intensa e verdadeira meu e de pessoas que eu amo muito; um momento de grande conexão espiritual-musical.”
Ale Iafelice: “Significou uma parte importante de nós sendo deixada eternamente para esse mundo da forma mais pura, sem querer pagar de isso ou aquilo, simplesmente sendo nós mesmos em busca da evolução musical e humana.”
Alemão: “Significou muitas coisas, mas destaco que é o meu registro musical de maior relevância ate hoje. Vivi muitas aventuras graças a ele e conheci muita gente legal na estrada. Agradeço a todos que participaram de alguma forma, guardo tudo isso com muito carinho no coração. O registro está aí e para mim sempre trará boas lembranças de uma época. Música e surf são a minha religião até hoje e vejo que são formas de você se expressar por conta própria. Você não precisa de ninguém para aprovar aquilo, faz para você mesmo e, se agradar aos outros, é ainda mais legal. É bom poder mostrar pros meus futuros netos ou bisnetos que eu participei desse projeto, e quem sabe o Liberta é descoberto pelas futuras gerações daqui a 200 anos?”
Candinho: “O Liberta foi uma época muito boa na minha vida, principalmente pelas pessoas com quem eu estava junto. E Essa sincronia que existiu entre a banda e muita gente de ver um valor naquilo, me deu a chance de presenciar momentos muito especiais. Nos shows existia essa catarse coletiva, é piegas mas é difícil explicar. Parecia na época, e ainda parece, muito certo, muito positivo. Sou grato por todo mundo que estava envolvido nisso e me sinto sortudo de ter sido parte.”
Cabelêra: “Aprendi muito. Apesar de muita gente achar um disco ‘libertador’, capa branca, eu acho ele um disco BEM dark, o som e as letras mexem com um lado mais espiritual da música que não é qualquer um que consegue falar sobre… Pela idade que nós tínhamos, me sinto orgulhoso de ter feito isso tudo junto com meus amigos. Quando olho 10 anos atrás, penso comigo, ‘puta que pariu’. Respeitando sempre os integrantes que vieram depois mas não consigo imaginar onde o Rancore estaria hoje com aquela formação…’
Liberta
Não tem jeito, hoje é dia de apertar o play e ouvir o Liberta bem alto para relembrar, celebrar ou conhecer um dos grandes discos nacionais da última década.
E como não poderia deixar de ser, #VoltaRancore! 😉