A cena musical brasileira é surpreendente. Isso se dá por vários motivos, mas um deles chama mais atenção: a grande variedade de gêneros, de artistas e de misturas.
Há certo tempo, a nossa música, tanto mainstream quanto underground, anda nos apresentando grupos incríveis, com as mais diversas e criativas propostas. Por exemplo, temos as bandas BRAZA e Francisco, el Hombre. Ambas nasceram nesta década, e já conquistaram uma legião de fãs por conta de suas músicas antropofágicas (para orgulhar Oswald de Andrade).
A BRAZA surgiu em 2016, formada por ex-integrantes da consagrada banda Forfun, que encerrou as atividades em 2014. Desde então, foram lançados dois álbuns de estúdio e um EP, misturando elementos do rap, do reggae e da música eletrônica de uma maneira muito criativa. Já a Francisco, el Hombre foi formada em 2013, e tem dois EPs e um álbum no currículo. A sonoridade proposta pelo grupo engloba rock, MPB e música latina.
Agora imagine tudo isso junto! É a proposta do EP conjunto intitulado Francisca La Braza. Lançado na última sexta-feira (7), o álbum contém uma canção inédita, duas covers e dois áudios de Whatsapp. O projeto surgiu a partir de um convite da produtora Zero Neutro.
Conversamos com os integrantes Vitor Isensee, do BRAZA e Mateo Piracés-Ugarte, da Francisco El Hombre, sobre o interessantíssimo resultado final. Em conversas separadas, ambos falaram sobre suas impressões sobre o EP e o seu processo de produção.
Era Uma Vez…
Foi uma coisa muito de paixão à primeira vista.
O primeiro encontro entre os grupos ocorreu no Festival Tenho Mais Discos Que Amigos, em 2017. A partir dali, a amizade foi crescendo e tomando forma até que surgiu o convite da Zero Neutro.
Ao chegar na passagem de som, o pessoal da BRAZA se deparou com a Francisco, el Hombre. Eles ficaram maravilhados, e logo depois foram se conhecer melhor.
Vitor Isensee: Acho que, além do talento, eles (a Francisco, el Hombre) têm uma coisa que é muito legal: eles são muito inclusivos, sabe? É uma galera que não tem essa coisa do blasé. São realmente abertos. É uma galera que chega junto. Eles vieram de peito aberto e ali a gente começou a trocar ideia. Depois, à noite, eles viram o nosso show e a gente viu o deles. Acabou que, no final das contas, estava todo mundo na roda do show do BaianaSystem pulando, dançando, zoando… Ali começou a amizade!
Dali em diante, conforme a amizade crescia, emergia também a vontade em gravar uma música juntos.
Mateo Piracés-Ugarte: A gente já até foi uma vez para o Rio de Janeiro, para uma reunião com o intuito de criar músicas. Trocamos ideias e discutimos sobre onde queríamos chegar com nosso trabalho. Então, com muita bebida, muitos becks e muitas good vibes, surgiu muita vontade, saca? Foi quando veio o convite da Zero Neutro. Simplesmente “caiu no colo”, depois de já estarmos com essa faísca no ar. Foi como se fosse uma lenha para um fogo que já estava rolando.
“Segue na batida do amor”
Uma síntese de toda essa amizade e desse interesse em gravar uma parceria surgiu com o lançamento de “Batida do Amor“. A música veio acompanhada por um clipe gravado na Ilha do Cedro, em Paraty. Por sinal, o vídeo foi só possível graças à tradicional população da ilha, que ajudou a fazer tudo isso ser possível. Foi o primeiro registo completo da união entre a sonoridade das duas bandas a ser divulgado.
A proposta da Zero Neutro foi gravar a canção inédita em apenas um dia. Parece assustador, mas Vitor, no entanto, considerou isso benéfico para o resultado final:
Vitor: Quando se tem um prazo, você direciona e canaliza a produção. Fica mais sintetizado, sem ficar ali viajando e tal. Às vezes, não tem um prazo e você fica dando mil voltas para não chegar a lugar nenhum. Nesse caso, teve também o fato de ser um puta trampo. A gente dormiu pouco e passou cerca de 12 horas por dia no estúdio, mas valeu a pena e acho que o cronograma ajudou a gente a focar.
Para Mateo, a intimidade que as bandas já tinham entre si acelerou o processo:
Mateo: Pareceu que saiu muito rápido, inclusive. Isso porque a gente já estava muito unido, não apenas em termos de amizade, mas também com ideias muito parecidas. Na hora de gravar, foi fácil demais.
A produtora disponibilizou uma boa infraestrutura para as bandas se sentirem à vontade. Além disso, o trabalho em equipe foi muito importante. Enquanto um ajeitava a letra, outro ia gravando as bases da música… Tudo fluiu com grande organização e, é claro, guiado por uma vontade de ver um resultado legal!
Vitor: A gente deu sorte, porque “A Batida do Amor” saiu meio de supetão. Isso é uma coisa meio rara, mas às vezes acontece. Você vai fazendo, vai escrevendo e a música parece que vai tomando forma sem que você precise quebrar muito a cabeça…
As releituras
Francisca La Braza conta apenas com uma faixa inédita, mas traz duas covers que, pela criatividade percebida nos novos arranjos, parecem quase uma música inédita. A proposta era uma banda regravar uma canção da outra.
Enquanto o BRAZA recriou “Calor da Rua“, faixa do elogiadíssimo álbum SOLTASBRUXA, a Francisco, el Hombre deu vida a uma nova versão de “Liquidificador“, faixa-título do último EP lançado pelo grupo carioca.
Vitor: Queríamos fazer uma releitura e não simplesmente uma cover. Tanto que a nossa versão de “Calor da Rua” conta com partes de letra que não existiam na versão original e, na versão deles, a mesma coisa. A gente teve muita liberdade para recriar em cima de um ponto de partida.
Mateo: “Liquidificador” foi a nossa escolha porque, dentre as músicas da BRAZA, era a que mais representava o que a gente fez enquanto Francisco, el Hombre, que foi foi juntar um bando de hit musical de uma maneira não forçada, mas orgânica. Percebemos, então, que fazíamos essa mistura, onde cada um era o máximo de si mesmo, ou seja, no palco não tem um frontman ou uma frontwoman e quatro músicos. Existem cinco personalidades muito diferentes e se expressando ao máximo. Se fazemos isso, a gente passa a realizar o que a gente mais deseja fazer, que é se expressar e fazer música, entende?
Vitor: Na nossa opinião, (“Calor da Rua”) é uma das músicas mais fortes da Francisco. E quando eu falo forte, não digo respeito só a visualizações ou likes. Ela tem uma temática super importante e válida, abordando várias questões sociais. Fala um pouco de misoginia e tem um refrão que é muito poderoso. E coincidentemente o andamento e o BPM (batidas por minuto) dela cairiam muito bem em algo que a gente gosta de fazer. Então isso pesou na decisão.
O BRAZA, sempre flertando com os trabalhos da banda-amiga, chegou a cogitar outras músicas, como “Tá Com Dólar, Tá Com Deus“, faixa que também está no disco cheio da Francisco. Vitor ainda nos contou sobre ocasião em que sua banda fez uma releitura para o sucesso “Triste, Louca ou Má“:
Vitor: A gente chegou a gravar um arranjo e ficou super legal. Chegamos até a mostrar para eles em um dia em que eles estavam aqui no Rio. A gente estava super empolgado, mas aí a Ju (Juliana Strassacapa, vocalista) falou “Galera, tá muito maneiro, mas acho que essa música tem uma questão de representatividade muito forte e acho que de repente não faz sentido vocês, por serem homens, cantarem essa música”. A gente pensou pra caramba e, realmente, no final das contas, concluímos que ficaria realmente uma forçação de barra. É uma música que tem uma questão de representatividade muito forte. Ela ainda se tornou um hino pra muita gente, muita gente envolvida na questão do feminismo. Acho que foi legal a Ju ter dado esse toque. Daí a gente optou por “Calor da Rua”. De todas, acho que foi a melhor escolha, a que ficou mais com a cara do BRAZA.
Áudios de Whatsapp como faixas finais
Se você já abriu o álbum em alguma plataforma digital, deve ter reparado que ele possui 5 faixas. Falamos de 3, sendo elas uma inédita e uma cover. Mas e as duas finais?
Tratam-se de áudios de Whatsapp. Mateo nos explicou a incomum e curiosa escolha:
Mateo: Uma coisa que colocamos no EP para mostrar para a galera essa good vibes que rola entre as bandas, e para todo mundo entender que não é apenas uma questão de trabalho, mas sim uma questão de amor, a gente colocou como faixa no EP dois áudios de Whatsapp que circularam muito durante todo esse processo de gravação. São um áudio do Sebastián (Piracés-Ugarte, um dos fundadores da Francisco) falando sobre o sentimento que a gente tinha um dia antes de começar a gravar, e também um áudio do Macaxeira (Acioli, percussionista da Muntchako), que ele mandou para nós quando pedimos para ele gravar as percussões. A gente mandou para ele a música, ele ouviu a música e respondeu com esse sentimento. A gente está muito curioso para ouvir a opinião da galera sobre essas duas faixas.
Parcerias que fortalecem a cena
Fazer parcerias é deixar claro que a gente está aqui para trampar e para crescer junto.
A união entre dois artistas pode ser benéfica em muitos sentidos. Além de uma troca entre os próprios músicos e, consequentemente, entre seus públicos, isso gera amizades, maior reconhecimento e, mais importante, muito aprendizado.
A Francisco também lançou, este ano, a música “Clareia“, em parceria com a banda Scalene. De acordo com Mateo, essas parcerias são muito importantes:
Mateo: É uma responsabilidade muito grande conseguir fazer uma música com outra banda, porque cada banda é um relacionamento. Juntar duas bandas, dois relacionamentos, e fazer com que isso represente todo mundo, é um desafio de abaixar o ego, de abaixar todas as suas ansiedades para conseguir ouvir. Trabalhar com a BRAZA foi ótimo! São pessoas muito trabalhadoras, a mesma coisa da Scalene. Acho que isso faz toda a diferença. O músico que entende que, para fazer o seu rolê rolar, nada vai cair no colo. Tem que correr atrás.
Mas não vamos negar que existe uma questão comercial envolvida, como bem nos lembrou Vitor:
Vitor: Eu acho que, quando você se propõe e recebe essas propostas, você cresce, você aprende… Não por acaso, estão fazendo muito isso. Acho que tem muito da questão comercial também. Não vamos dar de românticos a ponto de achar que não existe uma questão comercial. Existe, porque você fica mais forte. E isso não só no Brasil: a Rihanna, quando se junta com o Drake, está querendo aproveitar ambos os públicos e potencializar aquilo. Mas da nossa parte, e acho que da Francisco também, não é esse interesse comercial que vai determinar o trabalho. A questão pra gente está muito mais na troca, no aprendizado, no crescimento. Eu digo por mim e todas as vezes em que trabalhamos com outros artistas. O “pulo do gato” foi ter aprendido muita coisa com quem você ta trabalhando, porque assim você percebe como as outras pessoas compõem, como é o processo criativo.
Música latina, reggae, rap, rock…
É bom transitar. É bom colar com outras pessoas. Assim, você cresce, vê possibilidades…
Se parcerias no geral já agregam muito valor à nossa música, imagine parcerias entre estilos musicais diferentes! Mas se você pensa que essa mistura foi uma preocupação para as duas bandas, você se enganou feio.
Ao mesmo tempo que uma já flertava com a sonoridade da outra, o conjunto se preocupou em deixar todos confortáveis, sem impor nada que seja muito alheio ao escopo musical de ninguém.
Vitor: Não adianta botar eles para fazer rap ou reggae e nem adianta querer colocar a gente pra tocar salsa. Ninguém vai ter essa propriedade, então tentamos achar o meio termo. Tivemos esse cuidado, mas não foi uma coisa determinante de “Ah, vamos fazer uma música que tenha um pouco de reggae, um pouco de rap, um pouco de latinidade” foi mais um “vamos deixar fluir”. Também não faria sentido a gente querer impor que tem quer ter uma parte reggae e uma parte latina. A gente deixou fluir e acho que, no final das contas, acabou tendo uma outra identidade. A experiência foi muito boa, e vai que um dia a gente faz outra coisa juntos?
Mateo: Misturar isso tudo foi muito fácil, muito simples. Já estava dentro de cada um de nós, saca? Misturar a latinidade dentro da música do BRAZA era uma coisa com a qual eles já estavam brincando, e brincar com música eletrônica é uma coisa com a qual a gente já estava flertando.
Isso esbarra na famosa questão antropofágica. Misturar pode ser algo arriscado, mas no final das contas, auxilia no desenvolvimento de determinado gênero musical. Parafraseando os meninos do BRAZA, é a questão de “jogar tudo no liquidificador”.
Vitor: “Antropofágica” é a palavra. E isso é algo que se propõe há muito tempo no Brasil, desde a época do Modernismo. Tropicália, manguebeat. Tivemos muitos reflexos disso. Acho que se pegarmos a música brasileira hoje, conseguimos ver o quão antropofágica ela é. Claro que existe ainda a galera mais “purista”, que se prende a um gênero específico. Mas o interessante é misturar, é o amálgama: é incluir, misturar, e, com a mistura, agregar ainda mais valor àquilo.
Planos futuros
Como a vida no mundo na música não pode perder tempo, questionamos os entrevistados sobre os planos futuros de seus respectivos projetos principais.
Mateo: Depois do lançamento deste EP, o próximo passo é a dominação mundial (risos)! A gente quer rodar, levar a “Batida do Amor” para todos os palcos do Brasil. Quanto mais shows a gente for tendo, mais a gente vai criando um show conjunto, até que vire uma banda por si só. Seria incrível tocar em duas bandas; tocar na Francisco El Hombre e também em uma banda completamente diferente, que se chama Francisca La Braza. Quem sabe não rola um disco?
Vitor: A gente já está começando a sentar para compor. Na verdade, a produção não para! Acabamos de lançar nosso terceiro trabalho autoral, nosso primeiro EP, e foi legal tentar este formato. Agora, para o próximo lançamento, estamos pensando em mais um álbum cheio. Isso e um projeto dos remixes de músicas nossas são nossas principais metas para 2019. Além disso, estou começando a trabalhar em um projeto solo que ainda deve demorar para sair. Quem está produzindo é o Tomás Troia, um amigo antigão meu, que produziu Castello Branco e Duda Beat. E, é claro, tocar. Fazer shows, tocar em festivais.
Agenda
O Francisca La Braza fará sua estreia ao vivo no próximo dia 9 (domingo), em Curitiba. Depois, se apresentará em São Paulo no dia 13 e no Rio de Janeiro no dia 15. Que tal? Confira a agenda clicando aqui.