Por Anna Mota
Um ambiente realmente propício a conhecer novos artistas. Para além do line-up formado por nomes como Skepta, Primal Scream e Charli XCX, este é o ponto alto do Pitchfork Festival Paris, onde o TMDQA! esteve entre os dias 31 de outubro e 2 de novembro.
A nona edição europeia do evento ocupou o espaço multicultural Grande Halle de la Villete, em dias marcados por diferentes gêneros musicais, apenas com o “alternativo” em comum — selo que é usado para facilitar a apresentação do festival, ainda que a realidade seja abrangente. Pelos quatro palcos (Petite Halle, Studio, Nef e Grande Halle), passaram artistas que vivem realidades opostas no mundo digital. De um lado, está por exemplo o inovador Nelson Beer, com menos de 2 mil ouvintes mensais no Spotify; de outro, o mais pop que indie The 1975, com 9,1 milhões na mesma plataforma.
Tal diversidade está no cerne da criação de festivais de música, mas é uma característica que se torna cada vez mais rara nos circuitos comerciais e que se destaca no Pitchfork pela curadoria e montagem dos palcos. Os dias de estilos definidos tornaram o público disposto a chegar cedo e explorar palcos menores. E a decisão foi respondida de forma esplêndida pelos artistas que trouxeram inovação, não deixando ninguém ir embora desapontado.
1º dia do Pitchfork Paris — a força da cena instrumental na Europa
A quinta-feira teve a programação focada em hip-hop, jazz e soul, e um dos destaques apareceu apenas uma hora após a abertura dos portões, às 18h, no Studio. A estado-unidense Candace Camacho (ou duendita) teletransportou a atmosfera do Queens, bairro em que nasceu e vive em Nova York, para o pequeno anfiteatro do Pitchfork, em uma intimista apresentação para 250 pessoas. Com a ajuda de um baixista e de muitos recursos eletrônicos, ela redefiniu ao vivo qualquer potencial pré-conceito sobre o soul. Com canções do seu primeiro disco, Direct Line to My Creator (2018), explorou os paradoxos entre dor e cura, solidão e coletividade, tornando a identificação entre público e artista uma tarefa mais do que fácil.
Outra surpresa foi o percussionista britânico Yussef Dayes — no festival, uma primeira amostra da atual força da cena instrumental europeia. Às 21h, ele lotou o Petite Halle, bar transformado em palco, que pelo tamanho oferecia uma atmosfera democrática entre plateia e banda. Acompanhado de um baixista e um tecladista, fez um show que se aproximou do que Damien Chazelle quis retratar em Whiplash. Com rápidos movimentos, ele embasbacou a plateia ao desfilar as mais diversas referências, usando o jazz dos anos 1960 como base, e adicionando pitadas de afrobeat, dubstep e até mesmo bossa nova.
O instrumental continuou a se provar essencial e contemporâneo na apresentação do trio The Comet is Coming, composto pelo duo Soccer96 e pelo saxofonista Shabaka Hutchings. Com eles, o free jazz se desdobrou em eletrônico, rock e ultrapassou qualquer fronteira pré-estabelecida. O show, que trouxe músicas do mais recente disco, The Afterlife (2019), fez o público transcender em uma experiência psicodélica inesquecível.
E, entre as bandas que passaram pelo palco principal, o instrumental mereceu mais uma vez menção, com o coletivo britânico Ezra Collective. O nome do mais recente disco do grupo, You Can’t Steal My Joy (2019) – “você não pode roubar minha alegria”, em tradução livre – faz jus à apresentação no Pitchfork. O jazz descomplicado do quinteto, repleto de acenos ao afrobeat e ao hip hop fez com que o público se envolvesse e esquecesse dos vocais. Para além dos magníficos solos e da coerência temporal, o show contou ainda com uma homenagem ao Brasil, com a música “São Paulo”, que foi apresentada com um convite para os franceses a aproveitarem como faríamos em solo tupiniquim.
Representando a cena de rap europeia — em grande parte francofônica — , passaram pelo Pitchfork Mura Masa, a impressionante Flohio, Hamza, Ateyaba e os principais headliners Skepta e Zola. Apesar de atraírem o maior público do dia, os dois últimos nomes realizaram apresentações meramente funcionais no festival.
2º dia de Pitchfork Paris — indie rock, country e futurismo
Ainda que a data tivesse bandas clássicas dos anos 1990 (Primal Scream) e 2000 (The Chromatics e Belle & Sebastian) no line-up, foram os novatos que roubaram a cena novamente. Um primeiro exemplo foi dado pelo suíço Nelson Beer, que fez o público transcender com um impressionante jogo de luzes, frequências e batidas, provando que o punk não está ligado a nenhum estilo musical. Ao flertar com o eletrônico, o pop, o trap e o techno, o artista provou estar em constante busca de uma substância criativa mutável que invadisse as sensações do público. Performático e minimalista, usou elementos sutis na construção da persona. Iniciou o show descalço, com postura corcunda e desconfiada, e mudou conforme vestia botas de salto. Calçado, conseguiu olhar o público nos olhos durante os raros momentos em que usou o microfone para entoar canções como “I Am a Woman” e “Modern Love”. Algo que poderia ser chamado de “música futurista”.
No show de Orville Peck, a inovação continuou, só que sem a ajuda de recursos eletrônicos. O canadense é um dos propagadores do country, que poderia ser tachado como ultrapassado caso o artista não desafiasse o gênero historicamente sexista com temáticas como homossexualidade, solidão e a importância da cena drag queen na construção da liberdade de expressão. O pacote se tornou completo com o visual formado por um paletó e uma calça vermelha bordados em brilho, e uma característica máscara de franjas que esconde sua identidade.
Mas se for para falar de indie rock (que era o “gênero” do dia), ficamos com Nilüfer Yanya, britânica de 23 anos que tem muitas histórias para contar. Apresentando canções do elogiado disco de estreia, Miss Universe (2019), a artista convidou o público a mergulhar em inseguranças, jovens certezas e paradoxais emoções (“I cannot tell if I’m paranoid/Or it’s all in my head” foi um verso de “In Your Head” cantado a plenos pulmões pela plateia). Ao esbanjar sinceridade, ela construiu um sólido um indie rock que não tem medo de ser pop e que está longe de ter o foco em linhas de guitarra inspiradas pelos Strokes ou Monkeys. Com a ajuda de uma banda talentosa, formada por uma saxofonista/tecladista, um baixista/tecladista e um baterista, ela apresentou a fórmula perfeita para um festival, agradando fãs e o restante do público, sedento por acessíveis novos artistas.
3º dia de Pitchfork Paris — o pop no festival alternativo
O sábado foi responsável por abrigar fãs alucinados, que esperaram 1h30 até a abertura do palco principal (Grand Halle) para correrem em direção à grade. Alguns para ver a popstar Charli XCX, mas a maioria para dançar ao som do The 1975. A situação era clara pela quantidade de camisetas, bonés e cartazes dedicados ao vocalista Matt Healy, que entraria no palco apenas às 21h45.
“Terem me dado apenas uma hora (de show), chega a ser algo desrespeitoso”, foi uma das primeiras frases de Healy frente ao público. Algo que soou prepotente no início, mas que se mostrou verdade após a banda ter sido acompanhada por um coro da plateia nas primeiras cinco músicas (“People”, “Give Yourself A Try”, “TOOTIMETOOTIMETOOTIME”, “She’s American” e “Sincerity is Scary”). E apesar do ego contido em cada palavra, o vocalista se manteve aberto a interagir com os fãs, atendendo ao pedido de incluir “Paris” no setlist de última hora, e de usar um chapéu jogado por um dos presentes durante a apresentação. Mesmo com o set reduzido, a banda tocou os maiores hits dos três discos lançados, com uma estrutura audiovisual impressionante. Entretenimento garantido.
Ego e entretenimento também foram duas características marcantes na passagem de Charli XCX no festival. Apesar de não condizer tanto com o line-up do Pitchfork, ela se auto afirmou ao dizer que estava entre as cinco artistas pop mais ouvidas no mundo antes de cantar “Vroom Vroom” (que tem 9,5 milhões de visualizações apenas no YouTube). O uso do playback durante a apresentação se tornou quase justificável pelo fato dela ter que segurar a apresentação sozinha, o que mudou apenas durante “Gone”, quando convidou a francesa Christine and the Queens ao palco. Para a identificação dos brasileiros, Charli cantou “I Got It”, que conta com a participação de Pabllo Vittar, mas deixou a última colaboração das artistas, “Flash Pose”, fora do set.
Quem teve uma postura oposta à Charli XCX e ao The 1975 foi Aurora, que com humildade continua a provar um crescimento artístico impressionante desde o lançamento do primeiro EP, Running With The Wolves, há quatro anos. Com passagens por diversos festivais ao redor do mundo, incluindo o Lollapalooza São Paulo em 2018, ela criou uma persona que é inconfundível e forte o suficiente para ocupar um dos postos de atrações principais nesses eventos. Com ares de fada (ou de uma jovem Florence Welch), a norueguesa saltitou por um palco repleto de elementos espaciais enquanto injetava emoção em músicas que, nas plataformas digitais, têm mais de 50 milhões de reproduções, como “Runaway” e “Half The World Away”. 45 minutos de puro encanto no Pitchfork Paris.
E, se até agora havíamos ressaltado nomes de alcance internacional do último dia do festival, dois destaques da programação ficam com os franceses da dupla Agar Agar e com o DJ e produtor SebastiAn. Agar Agar é Clara Cappagli nos vocais e Armand Bultheel no teclado e sintetizadores. Estrutura enxuta se comparada ao efeito que a dupla parisiense tem no público. Com batidas que intercalam o electro-pop e o techno, não há ninguém que não se sinta hipnotizado pelas músicas de The Dog and the Future (2018) e Cardan (2016). Para complementar a linguagem corporal de Clara, o duo convidou um dançarino que primeiro apareceu fantasiado de segurança, para depois arrancar a camiseta e revelar o real motivo de estar ali. Na última música, foi acompanhado por outras seis pessoas que estavam longe de serem dançarinos profissionais, mas que pareciam ser colegas do Agar Agar dispostos a ficar semi-despidos enquanto se movimentavam pelo palco.
Já SebastiAn é uma figura discreta porém indispensável do selo francês Ed Banger. Artista plural, é DJ, compositor para os filmes de Romain Gavras (também conhecido na indústria musical como o diretor do vídeo de “Born Free”, da M.I.A., e “No Church In The Wild”, de Kanye West) e produtor de grandes artistas como Frank Ocean (em Blonde) e Charlotte Gainsbourg (em Rest). E, uma semana antes de soltar seu primeiro novo disco cheio em oito anos, Thirst (2019), fez um set que mostrou a variedade de referências ao passear por sua carreira, pela história da música eletrônica francesa e pelas relações sociais modernas no Pitchfork. Apresentação que atuou como um bom resumo dos objetivos do festival: transcender o presente, sem perder o fio que conecta o público com a atualidade e com as essenciais memórias musicais das últimas décadas.