"Quero trazer a fé de volta às pessoas": conversamos com MC Tha sobre funk, padrões e religiosidade

Em "Rito de Passá", um dos melhores discos de 2019, MC Tha exalta um discurso de liberdade apoiado em pilares do feminismo e da religiosidade.

MC Tha (No Ar Coquetel Molotov)
Divulgação

Vivemos sob padrões. Muitos não percebem, mas tudo que diz respeito ao nosso comportamento cotiano vem de ideais padronizados da civilização. Isso vale para tudo: desde a nossa vestimenta até as nossas crenças.

A humanidade é tão cega por padrões que muitos não se perguntaram sobre o que verdadeiramente são. Acabam não refletindo sobre orientação sexual, religião ou até mesmo musicalidade. A MC Tha, por exemplo, é uma incrível artista que desenvolveu seu som até encontrar algo satisfatoriamente único.

Apesar de reconhecer estar em constante aprendizado sobre quem é e sobre qual é o seu lugar no mundo, Thais da Silva teve uma trajetória musical fluida que pode servir de inspiração para aqueles que não conseguem encontrar seu próprio som. Ela começou no funk, fazendo parte de uma frutífera cena musical na Cidade Tiradentes, extremo leste de São Paulo. Após um tempo afastada da música, ela se reconectou com a chance de produzir um som original.

Nessa trajetória de auto-conhecimento, MC Tha incorporou ao funk elementos pop e elementos característicos da Umbanda, religião de matriz africana da qual é praticante. Dessa união inusitada e original nasceu Rito de Passá, um dos melhores discos nacionais de 2019.

 

“Cantar uma música para as pessoas dançarem enquanto ouvem uma mensagem que vai além”

Conversamos com MC Tha sobre esse caldeirão de referências, fé, shows e autoconhecimento. Ela se apresentou no festival S.E.N.S.A.C.I.O.N.A.L!, em Belo Horizonte, no último dia 08 e vale enfatizar que o show da cantora é uma expressão de liberdade e de fé (e não estamos falando de uma fé específica, mas, sim, da fé individual de cada um).

Você consegue conferir a entrevista inteira logo abaixo. “Abram os caminhos” para esta grande aposta da música nacional!

TMDQA!: A relação da sua música com a Umbanda é muito interessante. Acho que o Brasil tem uma resistência grande com outras religiões, especialmente as de matriz africana. Como a sua música dialoga com essa religião? Como foi levar essa relação entre música e religião para seu trabalho?

MC Tha: Foi uma construção que se deu de uma forma muito natural. Entendi que acrescentar ritmos da Umbanda seria bom para mim e para quem me acompanha. Eu acho que meu trabalho tem um pouco de autoconhecimento, de uma tentativa minha de querer entender quem é a MC Tha e dar uma cara para ela, que não é a cara da funkeira que veio do funk da periferia e nem a cara do funk pop que toca nos rádios e na TV.

Cheguei à conclusão de que o trabalho é muito sobre o que a Thais vive, o que faz parte da minha vida. Foi muito natural para mim falar de Umbanda. Está no que eu falo, no que eu posto, e consequentemente no que eu canto. Fora tudo isso, eu ainda me deparei com um cenário de carência. As pessoas estavam precisando de alguém jovem que se posicionasse dessa forma e falasse sobre isso.

TMDQA!: Em relação a disseminar as ideias da Umbanda, você sente que conseguiu através da música fazer com que outras pessoas tentem se abrir para entender a religião?

MC Tha: Sim! Acho que essa questão de mostrar a religião nas minhas músicas vem desde antes de “Rito de Passá“. Vem desde um single que lancei chamado “Valente“. Foi a primeira música em que vi essa sensibilidade maior na letra. Tive a coragem de colocar isso para jogo: cantar uma música para as pessoas dançarem enquanto ouvem uma mensagem que vai além. Desde então, eu sinto que tenho essa sensibilidade, que ficou mais “escancarada” com Rito de Passá. A mensagem não está só nas músicas, mas também em toda a identidade visual do álbum. Foi um divisor de águas para mim.

Mc Tha - Rito de Passá

Eu recebo muitas mensagens de pessoas que nunca tiveram contato com nenhuma religião e se encontraram na Umbanda e no Candomblé. Outras pessoas estavam afastadas, mas entenderam que a religiosidade e a espiritualidade pode ser cuidada em qualquer lugar. Eu sinto que mais pessoas passaram a me acompanhar. Meus maiores divulgadores, por exemplo, foram páginas de terreiros, grupos de Whatsapp de terreiros, páginas de Instagram que falam sobre Umbanda e Candomblé…

TMDQA!: Em algum momento, você já percebeu de alguém algum tipo de preconceito ou resistência em relação às mensagens que você propaga?

MC Tha: Eu acho que não de forma direta. Ninguém nunca apontou na minha cara e disse isso. Mas é claro que, nos bastidores, deve rolar alguma “fofoca”, já que eu não sigo a linha reta que a maioria do pessoa segue, sabe? Fora isso, são os preconceitos “normais” de cada dia. Eu também tenho uma questão diferente com o meu corpo. Se minha blusa cair, vou cantar com o peito de fora no show. E tudo bem, sabe? Eu falo de questões da liberdade do corpo feminino de uma forma que talvez incomode certas pessoas. Acho que a resistência acaba sendo uma junção de tudo isso.

TMDQA!: Como foi desenvolver sua sonoridade desde o funk até o que ouvimos hoje? Que referências musicais você foi incorporando? Existe algum nome específico que te inspire?

MC Tha: Quando eu comecei a cantar funk, eu tinha 15 anos, lá por volta de 2008, 2009… Desde então, eu sempre tentei misturar as coisas. Só que, nesta época, o movimento do funk estava começando em São Paulo. Eu até arrisco dizer que a Cidade Tiradentes, onde fui criada, foi o primeiro lugar a abraçar o funk. Começamos a organizar eventos. Além disso, tem o fato de que fui a primeira mulher de lá a cantar. Era um bando de homens e eu no meio tentando fazer alguma coisa.

No mais, eu sempre gostei de música brasileira, porque era o que eu ouvia em casa. Eu sempre fui bastante consumidora. Eu também sinto que nunca me enquadrei direito no padrão do funk, porque sempre tive a voz mais suave e nunca fui boa de dança. Eu sempre ouvia que tinha que ter uma voz mais agressiva. Quando fiz 17 anos, parei de cantar, porque comecei a trabalhar e fazer Jornalismo. No meio dessa nova fase, comecei a morar com o Jaloo e ele me incentivou a voltar. Eu já devia ter uns 22 anos, mas ele me despertou a vontade de voltar a cantar e me ajudou, produzindo “Olha Quem Chegou“.

Foi a primeira música dessa minha nova fase. Quando eu senti que consegui uma oportunidade de recomeço, eu decidi passar a fazer a minha música da maneira que eu possa fazer. E aí passei a colocar em prática o que eu já queria colocar. Entendi o que eu queria e como eu podia brincar com os ritmos brasileiros nas composições.

 

“O funk é uma identidade”

TMDQA!: Mesmo com as diversas mudanças na sua sonoridade que te transformaram musicalmente em quem você é hoje, você manteve o termo “MC” no seu nome artístico. Existe um movimento no funk de artistas tirarem ou ocultarem isso, como se “MC” fosse um termo depreciativo. Você cogitou, em algum momento, ser reconhecida apenas como “Tha” ou algo do gênero?

MC Tha: Nunca pensei em tirar o “MC” do nome. É uma questão delicada. No meu caso, o MC ajuda muito a lembrar o meu ponto de partida. Eu acho que ele não impede que eu alcança outras coisas. Pode ser uma visão um pouco ingênua, mas acho que não impede. Em mim, por exemplo, o funk se manifesta em outras coisas. O funk é uma identidade. Não é só um ritmo. É aquilo que faz o meu coração bater de uma forma diferente. Mastudo que é atrelado a isso soa negativo para alguns. Talvez seja isso que alguns artistas pensam quando tiram o “MC” do nome. O que acontece, na minha visão, é o contrário: o termo ajuda a afirmar que existem pessoas que vêm da periferia que podem fazer coisas ótimas.

TMDQA!: Como você deixou claro, a sua carreira foi um processo de auto-conhecimento até hoje. A partir de agora e do sucesso que você conquistou com os frutos de Rito de Passá, como você pretende guiar seus próximos passos?

MC Tha: Eu acho que eu estou sempre aprendendo. Eu quero ensinar também, é claro, mas sinto que aprendo muito mais. Eu ainda quero desenvolver o Rito de Passá com vídeos e mais shows. Quero alimentar o meu canal. E quero flertar também com artistas brasileiros que acho que combinam com o meu trabalho. Eu penso muito nisso de criar um caminho amarradinho. Tenho pensado muito sobre isso.

 

“Quero transformar essa desesperança em energia”

TMDQA!: Como você descreveria um show seu para quem ainda não conhece seu trabalho? O que o público pode esperar da sua apresentação no S.E.N.S.A.C.I.O.N.A.L!?

MC Tha: Nossa, que pergunta difícil (risos)! Eu acho que é um show muito de memórias, a princípio. Eu nunca parei para pensar nisso. Por exemplo, o meu show conta com músicas minhas e algumas covers. Essas covers que eu faço servem para conectar a música que cantei antes com a música seguinte. São coisas que têm a ver com o meu processo.

É um show muito afetivo. Não é um show que exige muito nem de mim e nem das pessoas que assistem. Todo mundo entra junto. Eu não preciso pedir para as pessoas levantarem a mão ou algo assim. Tudo acontece naturalmente, como se todos estivessem em sincronia.

TMDQA!: O festival tem uma pegada social e política também, se posicionando como “terra-redondista”. Na sua opinião, como o seu show se encaixa nesse contexto? Em que o seu discurso contribui para essa causa social e política do festival?

MC Tha: Eu acho que a minha causa mais social é fazer com que as pessoas voltem a acreditar nelas mesmas. Eu percebo pelas pessoas que me acompanham e frequentam os shows que parece que ninguém tem esperança em nada. Parece que nada dá certo hoje em dia, muito mais considerando a atualidade política do Brasil. Eu sinto um mundo desesperançoso, e quero, com os meus shows, transformar essa desesperança em energia. Quero que elas saiam do meu show com outra visão. Quero trazer a fé de volta às pessoas. Acho que meu trabalho não é só sobre religião. Eu tenho a minha porque me encontrei lá. Mas a ideia é mais sobre despertar a fé dentro da singularidade de cada um.