Música

Quando o indie invade a TV comercial: Måneskin e o caso do Festival de Sanremo

Rohmanelli, artista italiano radicado no Brasil, fala sobre a importância, influência e objetivos dos reality shows de música na Europa e aqui.

Maneskin, banda campeã do Eurovision
Måneskin, banda campeã do Eurovision

Por Rohmanelli

Sempre me perguntei, como estrangeiro e artista no Brasil, por que entre tantos reality shows de música (The Voice, XFactor, os vários ‘Idols’, Superstar, etc), o Brasil nunca teve um verdadeiro talento capaz de furar a dura bolha do mainstream. Com tanto investimento de energia, dinheiro, produções e meios, não é possível que não exista(m) nome(s) capaz(es) de se destacar e levar adiante ideias e projetos artísticos, o que de fato seria (ou deveria ser) o principal objetivo desses programas.

No Brasil, porém, esse não parece ser o foco, já que esses programas estão cada vez mais concentrados no sentimentalismo e na piedade que leve o espectador e os participantes às lágrimas, além da identificação entre artistas e público, a conexão com as suas histórias e outras características mais distantes da música e da arte em si.

O que acaba acontecendo é que aí tanto faz se todos cantam da mesma forma, se escolhem sempre o mesmo repertório e se os treinadores repetem frases feitas para todos eles: “você tem o pacote completo”, “adoraria ir a um show seu”, “você já é uma estrela!”

Carreira, Investimento e Bons Exemplos

Fica claro que há pouca preocupação com o crescimento artístico dos artistas, sendo que em muitos casos alguns deles assinam contratos com gravadoras e são pouco trabalhados após o programa, inclusive.

Dito isso, e sem querer estabelecer comparações de qualidade, acontece que no resto do
mundo esses programas, sobretudo o Xfactor e os “Idols”, têm revelado talentos incríveis
que se tornaram artistas com carreiras sólidas: Adam Lambert, Carrie Underwood, Jennifer Hudson e One Direction são apenas alguns dos exemplos.

Na Itália, meu país de origem que acompanho de perto, Noemi, Annalisa, Emma, Marco Mengoni, Gaia, Casadilego, uma infinidade de nomes que todo ano alimenta e sustenta amplamente o mercado fonográfico italiano e europeu com milhões de streamings e seguidores.

Mais especificamente, temos o caso da banda de rock alternativo Måneskin, sobre a qual falarei mais a respeito em breve.

O risco desses programas (amplamente real no Brasil) é que se tornem espetáculos televisivos padronizados e óbvios que fazem mal tanto aos artistas quanto ao público, espalhando a ideia de que para ser um grande artista baste fazer melismas inúteis e
parecidos, sorrir o tempo inteiro e dar tchauzinho com a mão para o público até quando
não precisa.

Cadê a personalidade vocal? A expressão corporal? A interpretação? A originalidade? Que tal ensinar que se deve interpretar cada texto de forma diferente e não focar apenas no alcance das notas, que nem sempre é necessário? Que tal mostrar um percurso efetivo e eficaz de crescimento artístico, uma espécie de “plano de carreira”?

Reality Show Musica na Itália

https://www.youtube.com/watch?v=1rGMfwz_HBY

Voltando à Itália, existe por lá um programa chamado Amici, na rede de Berlusconi, que há quase 20 anos revela talentos que conquistam o mercado regularmente, com uma fórmula que funciona de verdade, pois se trata de uma verdadeira escola de artes onde cantores e dançarinos estudam canto, música, dança e atuação com profissionais que os selecionam até a hora do programa ao vivo, em horário nobre, com um público que acompanha de perto a evolução de cada artista.

Voltando ao caso do Måneskin, posso dizer que ele é emblemático, pois sintetiza a boa utilização de um reality como esse: quatro jovens de 20 e poucos anos, direto de Roma, até cinco anos atrás tocavam nas ruas alimentando um sonho de sucesso e de grandes palcos, objetivo que todo artista deveria ter ao invés da ideia de ficar famoso o suficiente para comprar uma mansão ou uma Ferrari.

Em 2017, veio a virada com a participação no XFactor italiano, já que o grupo se destacou por conta do seu talento, das performances, da presença cênica, um quê de polêmica e uma atitude Rock And Roll que sempre faltou nesses programas cheios de cópias de Mariah Carey, Beyoncé e companhia.

Ao longo do programa (que também abre as portas para artistas da cena indie e não somente para desconhecidos que cantam em casa na frente do espelho, algo como o Superstar fez no Brasil) a metamorfose da banda italiana foi visível, graças ao coach Manuel Agnelli, grande líder da histórica banda de rock italiano Afterhours, que abraçou a causa dos meninos e logo viu um manifesto glam rock extraordinário fascinando a todos os espectadores com performances ousadas e muita originalidade.

O Måneskin (“luar” em dinamarquês) se revelou a si mesmo graças ao programa, e por lá ficou na segunda colocação, vindo a gravar álbuns, conquistar milhões de adeptos nas redes sociais e, com um crescimento inteligente e planejado, estrear no mais tradicional festival da música italiana e um dos mais importantes da Europa, o Festival de Sanremo (onde Roberto Carlos, Caetano, Louis Armstrong, Liza Minnelli, Whitney Houston, Queen e mais já tocaram).

Continua após o vídeo

Perceba que estamos falando de um festival representativo do conservadorismo italiano, que justamente por isso sempre foi palco de grandes transgressões que nunca conseguiram vencer o tão almejado troféu.

Aí chegou a pandemia da COVID-19, que entristeceu e paralisou o mercado da música, e logo no primeiro festival sem público e blindado da história, a energia devastadora, quase Metal do Måneskin estourou a apatia forçada de todos (velhos, jovens, doentes, sãos) e levou como um furacão os meninos num plebiscito rock até a vitória.

No dia 6 de março, a revolução aconteceu e o grupo levou o primeiro lugar arrebentando um país inteiro num evento comercial da TV aberta que se tornou, por escolha dos diretores artísticos e da RAI, um espetáculo de celebração e fortalecimento da cena indie fortemente prejudicada pela pandemia e pela falta de shows e auxílios até hoje.

Assim, num festival dominado há 70 anos por música melódica italiana, que tanto é amada no exterior e muito no Brasil (Bocelli, Pausini, Ramazzotti, etc), finalmente apareceram nomes como Colapesce, La Rappresentante di Lista, Aiello, Madame e mais.

É possível, então, nutrir o público médio com arte das mais diversas formas e de qualidade sem perder patrocinadores e audiência. Que tal copiar? Que tal mudar e parar de pensar que o público só quer consumir um ou dois estilos musicais?

Vejo tantos canais de televisão, tanto fechados quanto abertos, passando programas de música iguais no Brasil, em que sempre vejo os mesmos gêneros, cantores e apresentadores. Que tal misturar? Que tal reunir um cantor famoso e com grande apelo comercial a nomes do indie? Que tal olhar pra fora e ver que funciona, que é possível?

Que tal pelo menos tentar? Que tal?

 

Rohmanelli é artista há dez anos. Italiano, vive no Brasil desde 1998 e nos últimos meses lançou o album [Brazil’ejru] . Atualmente se prepara para gravar seu novo disco no Rio de Janeiro com produção de Jonas Sá e Thiago Nassif.