Por Rohmanelli
Alguns meses atrás, comentei aqui sobre a vitória inesperada e revolucionária de uma banda de Rock italiana — o Måneskin — no tradicional festival de Sanremo. Era mais uma etapa na escalada ao sucesso dos 4 meninos romanos desde sua participação no The X Factor Itália, em 2017.
Poucos meses depois, arrebentaram também no monótono e conservador Eurovision Song Contest, festival do “melhor” da música atual na Europa em que cada país da União envia (a princípio) seu mais relevante artista naquele momento. Assim como em Sanremo, mas com mais autoridade, os meninos conquistaram corações multilíngues com seu Rock cru (baixo, guitarra, bateria e voz), com sua atitude glam e com sua ousadia.
Damiano, Victoria, Thomas e Ethan conquistaram o mundo, atingindo a 11ª posição com a música “I WANNA BE YOUR SLAVE” no Top 50 do Spotify Global. Já a música “ZITTI E BUONI” é três vezes platina, com mais de 170 milhões de streams, e ocupa o Top 50 de 28 países, incluindo o primeiro lugar em dois deles.
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Por fim, a cover de “BEGGIN'”, música originalmente do The Four Seasons, ficou em 5º lugar e ganhou uma importante escalada no ranking com 5 milhões de streams, chegando ao Top 50 do Spotify em 61 países — atingindo o 1º em 10 países e também no Top 200 do Shazam.
Acontece que o fenômeno Måneskin é somente a ponta do iceberg de uma revolução italiana gender fluid que está desbravando terras estrangeiras inacessíveis até agora — ou somente acessíveis para poucos representantes da música melódica italiana, como Laura Pausini, Eros Ramazzotti, Andrea Bocelli, entre outros.
A Nova Armada Italiana
Há pelo menos outros dois nomes dessa nova leva, Madame e Mahmood, que também vieram da cena Indie e chegaram ao sucesso no Festival de Sanremo e no Eurovision Song Contest, entrando pela primeira vez nas paradas internacionais da Billboard e nos charts globais do Spotify.
Essa empreitada não foi nada fácil, considerando a rejeição radical desse mercado aos cantores não angloamericanos de nascença. A verdade é que a música italiana mudou muito radicalmente nos últimos dez anos, e essa mudança não ficou relegada aos circuitos alternativos, chegando poderosa e livre, musical e esteticamente, nos palcos conservadores da TV nacional.
Há algum tempo essa nova geração — todos que cito têm entre 18 e 22 anos — não somente fala uma nova língua, mas também abraçou totalmente a fluidez de gênero, a liberdade erótica e sexual que os artistas das gerações anteriores nem tinham considerado, ou o faziam somente superficialmente.
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Na Itália, é uma revolução e tanto ver no palco de Sanremo nomes como Achille Lauro, Madame, Damiano (o cantor do Måneskin) e outros vestirem bodys transparentes, roupas apertadas que pouco deixam a imaginar, saltos, batons, eyeliner, trocar beijos na boca ao vivo, tudo com um pano de fundo de músicas dominadas pelo Trap, autotune, slang, rimas imprevisíveis, estética glam dos anos 70-80, letras explícitas, palavrões e palavras sobre amor livre, beats pesados, enfim.
É uma verdadeira revolução de uma geração que não se reconhece mais nas atitudes e códigos dos pais e da tradição autoral italiana, mas que cria laços e uma identidade com a rede transnacional de artistas da mesma vibe, ainda que sejam de países diferentes.
Todos são adeptos da música D.I.Y — “Do It Yourself” — pois, de fato, todos são produtores, compositores, perfomers, influenciadores sociais e muito mais.
Mahmood
Mahmood define sua música como “Morocco Pop” — Pop de Marrocos — e é um símbolo perfeito dessa geração híbrida: italiano de origem árabe, vem de estudos clássicos, tem um alcance vocal amplo que vai do falsetto ao bel canto que é aplicado com um timbre peculiar às harmonias imprevisíveis que inventa com autotune e inteligência.
Sex symbol e também gender fluid, conquistou o Festival de Sanremo com a música “Soldi” (“Dinheiro”) em 2019, totalmente desconhecido, passando por cima de veteranos com décadas de carreira.
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Canta do abandono do pai, da adolescência solitária e criativa nas periferias de Milão… como os outros aqui citados, já virou garoto propaganda de grifes de moda, encarnando aquela junção perfeita de fashion, vision e sound que o magnífico e nunca esquecido David Bowie ensinou a todos nós.
Como o Måneskin, ele também foi ao Eurovision Song Contest depois da vitória em Sanremo, alcançando números invejáveis para um emergente italiano: tem dois milhões de ouvintes mensais no Spotify, e sua música mais famosa já está perto dos 200 milhões de streams e visualizações no YouTube.
O artista acaba de lançar o novo disco Ghettolimpo, onde canta em espanhol e inglês.
Madame
Madame tem percurso e discurso similar apesar de ainda mais jovem, com 18 anos de pura liberdade e originalidade.
Com a música “Voce” (“Voz”), conquistou crítica e público no Festival de Sanremo deste ano, onde foi premiada pela melhor letra e recebeu alguns meses depois o prestigioso Prêmio Tenco da música autoral italiana, dado pela imprensa especializada.
Após o famoso Festival de Sanremo de 2021, que teve mais música Indie representada do que nunca, ela entrou na posição 146 da Billboard Global excluindo EUA com 8,8 milhões de streams e 1500 downloads. Com Måneskin, Colapesce e Dimartino e Fedez e Michielin, é a primeira vez que 4 músicas inteiramente em italiano entram na parada mais importante do mundo.
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Madame também é fruto da província italiana, oriunda de uma cidadezinha do Veneto. Cresceu na cena underground, começou — assim como Mahmood — escrevendo e produzindo para outros, até encontrar sua “Voz”, como nos conta em seu lindo hit.
Como sempre acontece em uma cena órfã há muito tempo de personalidades artísticas, logo foi alvo da atenção mórbida de todos, com um tanto de polêmicas, haters e etc. a cada passo que dá. Mas a menina não tem medo da pressão: já declarou ser não-binária, escreve e canta de clitóris, sexo, depressão e mais, na mesma onda de Lorde e Billie Eilish. Encontrou o sentimento e o desespero de uma geração inteira e deu match!
O disco Madame já é considerado um dos melhores do ano e da cena Rap dos últimos 10 a 15 anos, e o primeiro em que uma mulher finalmente dita novas normas musicais e líricas e não fica só no flow dos bad boys da cena urban italiana.
O novo Renascimento italiano
Esses três casos são somente alguns sinais de um novo movimento muito maior: a música italiana vem sendo totalmente transformada, inovada nas suas raízes e na abordagem. Passa a ter outros objetivos, um outro público, uma outra linguagem e estética.
A música italiana estava estagnada há anos, repetitiva, conservadora, não havia novas ideias. Há anos, pelo menos vinte, sempre tinha os mesmos nomes nas paradas, nas TVs, nos jornais. Para que houvesse essa mudança, era necessário um ato drástico: matar psicologicamente os pais (musicais), fazer tabula rasa e recomeçar do zero.
Nenhum desses três se parece com os grandes do passado, como De André, Lucio Dalla, Celentano; eles são diferentes, nada ideológicos, pouco rigorosos, libertinos, explicitamente gender fluid, livres finalmente de uma tradição insuperável com a qual é quase impossível se confrontar.
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Eles dominam melhor os processos virtuais com os quais cresceram. As redes sociais são o lugar onde criaram seu público, onde compartilham com ele linguagem, anseios e sonhos. As leis cruéis do algoritmo e dos streamings os obrigaram a lapidar suas músicas de forma precisa e pragmática, pois é nos primeiros vinte segundos que têm que captar, convencer e vencer seu ouvinte. É outra forma de pensar e fazer música.
O novo Renascimento italiano está só no início: Måneskin, Mahmood, Madame, Itália campeã da Europa, Pausini no Oscar, Khabi Lame como o maior TikToker do mundo. O que mais me deixa feliz não é o sentimento de orgulho patriótico para meus conterrâneos, mas ver como há sim necessidade de originalidade e verdade no mundo e, sobretudo, no mundo artístico já cansado e anulado na sua especificidade por algoritmos, leis de marketing, exposições vazias nas redes sociais, BBBs da vida.
O mundo quer música, quer verdade, quer energia, quer ídolos anômalos, quer inspirações, quer motivação para acordar e quebrar todo dia as normas cada vez mais opressoras deste planeta. O caminho está aberto: a música como um todo, e de todo lugar, pode dominar o mundo com seus muitos sotaques.
O domínio anglocêntrico na “music industry” está com os dias contados.
Rohmanelli é artista há dez anos. Italiano, vive no Brasil desde 1998 e nos últimos meses lançou o album [Brazil’ejru]. Atualmente se prepara para gravar seu novo disco no Rio de Janeiro com produção de Jonas Sá e Thiago Nassif.