No primeiro final de semana de Agosto, Brasília foi tomada por duas coisas: um mar de terra, devido à seca, e boa música.
As duas coisas se uniram no Festival CoMA, uma experiência verdadeiramente única que fez com que praticamente todos os presentes saíssem com um enorme sorriso no rosto mesmo com as roupas, e principalmente calçados, totalmente sujos — sinal de que as últimas horas haviam sido de grande proveito, sem preocupação com qualquer outra coisa que não fosse curtir a maravilhosa edição de 2022 do CoMA.
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Não à toa, a primeira banda a subir no palco do evento principal (houve, também, alguns ótimos showcases durante a conferência nos dias anteriores) brincou com a situação. Natural de Salvador, o Maglore não resistiu ao clima e causou boas risadas no público ao desejar uma boa tarde ao “sertão do Caicó”, comparando a capital federal com a região conhecida por sua baixa umidade.
Nos palcos, entretanto, o calor era ainda maior — neste caso, felizmente, de forma figurativa. O próprio Maglore foi uma excelente atração para abrir os trabalhos, já que colocou todo mundo pra dançar e reuniu um bom público para as primeiras horas do festival, ajudando as apostas do evento, como Anna Moura, Pedro Alex + Bell Lins e a canadens Ammoye a conquistarem novos fãs.
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Festival CoMA 2022 e a celebração da diversidade
Antes de mergulhar de vez nos shows do festival, é importante fazer uma observação. Tem ficado cada vez mais comum ouvirmos falar sobre a necessidade de haver mais diversidade nos palcos do Brasil, em especial quando se trata de festivais. No CoMA, pouco foi falado sobre isso e muito foi feito, mostrando que uma ação vale definitivamente mais do que mil palavras.
Somando-se os palcos principais aos secundários, que oferecem experiências únicas como os shows dentro do Planetário de Brasília ou do Clube do Choro, espaços muitas vezes esquecidos pela própria população local, foram 23 shows no sábado e 22 no domingo com vasta maioria de artistas que se enquadram em algum tipo de minoria.
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Mas o mais importante foi justamente o quanto isso passou “batido” pelo público. Não que a plateia não tenha percebido e elogiado a representatividade do festival, mas isso não era celebrado simplesmente por um fator social: a graça estava justamente em quão boas eram essas atrações, com os presentes sempre comentando sobre a ansiedade para ver show X ou Y. Uma prova de que é, sim, possível montar um grande line-up com alta representatividade no Brasil de 2022.
Exemplos práticos disso ficaram bem evidentes já no primeiro dia, que contou com um (polêmico) cancelamento de última hora da dupla Tasha e Tracie que pareceu afetar, ao menos um pouco, o número de presentes no evento. Ainda assim, foi notável a reverência do público ao receber o lendário MC Marechal, e cada vez mais gente ia se acumulando conforme a noite ia caindo em Brasília.
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Sábado: de Maglore ao histórico show de Carlinhos Brown + ÁTTØØXXÀ
Como falamos acima, o Maglore abriu os trabalhos do palco principal no sábado e foi seguido por apostas do festival, com destaque para a excelente (e politizada) performance de Anna Moura, uma verdadeira revelação do DF que merece todo espaço que certamente vai conquistar.
Mas foi com a chegada da noite e a entrada do MC Marechal que as coisas foram começando a ficar mais pegadas no CoMA. O carioca, naturalmente, conversa bastante com o público — inclusive trazendo alguns discursos de arrepiar sobre o poder do Rap — e chegou até a cantar uma música nova, que deixou os maiores fãs maravilhados.
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Ao final da apresentação, foi sem dúvidas o artista mais solícito (e solicitado) pelo público. Como costuma fazer, desceu para encontrar os fãs, tirar fotos e distribuir livros, parte de um projeto com uma história interessantíssima que ele contou ao TMDQA! em entrevista após a performance:
Tenho um amigo que era professor em uma escola e ele organizou um sarau nessa escola. O sarau teve o apoio de um PAC, Programa de Aceleração de Cultura, em São Paulo, e ele me convidou pra ir nesse sarau atuar como artista e tinha uma ajuda de custo. Eu tinha um show no mesmo dia, numa boate chamada Inferno. Aí eu falei, ‘Cara, vou pegar essa ajuda de custo, vou pegar o livro de todo mundo do sarau e vou distribuir no Inferno’. Eu fiquei brincando, falando, ‘Mano, vou distribuir livro no Inferno’. [risos] Essa que era a viagem da parada. Não tinha a proposta ainda. Aí veio livro, levar, levar o livro, a gente fez o projeto Livrar. Hoje a gente já distribuiu mais de 10 mil, é legal pra caramba.
Depois de Marechal, foi a vez de Urias comandar a festa e levar o público ao delírio, inclusive com momentos em que também desceu do palco para interagir com a galera. Vale destacar que, ao mesmo tempo (e se seguindo por mais algumas horas), a novidade do festival, a Tenda Conexões, recebia uma apresentação de cultura Ballroom que foi bastante elogiada, assim como a performance de Kel & Margaridas que aconteceu logo depois na Tenda.
No palco principal, o festival ainda recebeu Gaby Amarantos em um show animadíssimo que contou até mesmo com dancinha da cantora com a intérprete de libras, outro ponto muito forte do evento: todas as apresentações dos palcos principais tinham tradução simultânea, e até o MC Marechal teve uma bela interação com a intérprete que se declarou “a maior fã” do rapper, revelando que sabia todas as letras (e mostrando isso ao traduzir sem pestanejar até mesmo os versos mais rápidos do cara).
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A reta final do sábado já contava com o maior público presente no dia, recebendo o espetacular show de Don L com um grave para deixar qualquer um desconcertado e versos que, de tão poderosos que são, têm o mesmo efeito. Mas a chave de ouro foi realmente a apresentação de Carlinhos Brown com o ÀTTØØXXÁ, uma verdadeira preciosidade dentro da escalação de festivais brasileiros.
Mais do que celebrar a música nacional e suas raízes, essa última atração foi um atestado de como a nova e antiga geração brasileira podem conversar entre si. Repaginado pela presença do grupo, o show de Carlinhos Brown foi uma oportunidade para todo mundo lavar a alma — não com água, mas com terra, respeitando a vontade da natureza para aquele momento.
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Palcos secundários e showcases
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Antes de falarmos sobre o último dia do CoMA 2022, vale a pena fazermos um desvio e voltar alguns dias no tempo. Na quinta e sexta-feira antes do evento, já é de praxe a realização da Conferência, um espaço que recebe diversas palestras para os entusiastas da indústria da música e também oferece showcases para novos artistas que, por qualquer motivo que seja, acabam ficando de fora dos eventos do final de semana.
É o caso de Natânia Borges, que por enquanto possui no catálogo das plataformas digitais o EP Encosto e o single “Afronta”, além da parceria com a banda Azenza em 2020 no álbum visual Liberdade (que ganhou prensagem em vinil em 2021), e já desponta como uma possível atração para os próximos anos. Em poucos minutos de show, a cantora foi capaz de evocar sentimentos únicos nos presentes, deixando todos ansiosos para um futuro disco solo que já está nos planos.
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Ela é, aliás, apenas um exemplo de como os dias “pré-CoMA” são importantíssimos e valem a presença de quem puder chegar mais cedo na cidade ou sair do trabalho em dias de semana para a Conferência. Se as atrações do final de semana são o presente, os showcases mostram o futuro, dão um gosto do que possivelmente vem por aí nas próximas edições não só do CoMA, mas da cena musica brasileira.
Isso se estende também para as palestras, que tratam de assuntos fundamentais na indústria da música nacional, indo desde inovações tecnológicas (como verdadeiras aulas sobre Web3, DAOs e o metaverso) até outras questões mais sociais, como A Ancestralidade Preta na Música, tema do painel comandado por Bia Nogueira, MC Tchelinho (Heavy Baile) e Raquel Virginia.
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Já nos palcos secundários (Planetário, Clube do Choro e Tenda Conexões), tanto no sábado quanto no domingo, houve mais uma vez um destaque para a diversidade das apresentações e para a valorização da cena independente, em especial de Brasília. O primeiro dia teve, por exemplo, um excelente show do ‘Akhi Huna, banda local que vai embarcar em breve em turnê internacional e tem uma sonoridade pra lá de única, no Clube do Choro.
Logo em seguida, veio a impactante performance de Vitor Ramil, enquanto a Tenda Conexões abriu espaço para o Rock com o Menores Atos e recebeu o encerramento da noite com Luísa e os Alquimistas. No domingo, vale destacar a apresentação da também brasiliense Bolhazul no Planetário, levando sua sonoridade etérea para um lugar que caiu como uma luva na proposta do grupo.
O segundo dia, aliás, também recebeu ninguém menos que Martinha do Coco no Clube do Choro, além da dupla revelação Àvuá. Na Tenda, novamente houve espaço para a sonoridade mais próxima do Rock com a presença do BRAZA, figurinha carimbada em festivais pelo Brasil todo, além de atrações internacionais que comandaram a festa.
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Domingo: acordando o Pedrinho e celebrando o legado de Gal Costa
Hora de voltarmos aos palcos principais para falar sobre o domingo do Festival CoMA 2022, que começou com um show impactante: a estreia oficial do Remobília, projeto de ex-integrantes do Móveis Coloniais de Acaju, uma das bandas mais icônicas da cena brasiliense.
Enquanto a apresentação ia rolando, no entanto, era possível perceber que o evento vinha ficando cheio bem mais rápido do que no dia anterior. O motivo era simples: o show da Jovem Dionisio, uma das bandas mais virais dos últimos tempos graças ao hit “ACORDA, PEDRINHO”, sensação do TikTok. Os curitibanos fizeram um show para mostrar que o repertório vai muito além do hit, mas é claro que o grande momento foi o público indo à loucura ao ouvir o já marcante “Não sei mais…”.
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A programação seguiu com mais um show local, dessa vez da dupla Puro Suco, que abriu os trabalhos do Rap nacional no dia e foi seguida por dois ótimos nomes. Trata-se do também local Jean Tassy e do icônico Rico Dalasam, uma das figuras mais importantes do gênero no país que apresentava pela primeira vez na cidade o excelente EP Fim das Tentativas.
Conversando com o TMDQA! após sua performance, Rico estava “suspenso”; não era à toa, já que seu show foi um dos mais aclamados da noite e ainda foi responsável por prover uma das maiores trocas de energia de todo o festival, quando o cantor se desloca para o meio do público e canta o hit “Braille”.
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Quase sem palavras, ele tentou descrever o que passava pela cabeça:
Eu passei o dia muito emocionado, porque tô com muitas coisas na cabeça. Ao mesmo tempo, eu chego agora no final do show e eu tô suspenso. Ainda tô suspenso. Tipo, chorei o dia inteiro, agora que foi mó lindo eu tô meio sentindo nada, sabe? Isso é uma suspensão emocional. Mas eu tô em paz. Eu tô sentindo paz. Eu tô sentindo uma paz de quem lutou consigo mesmo, tá ligado? De quem lutou consigo mesmo pra não se distrair na própria dor. Eu tô em paz, eu não tenho que lutar comigo mesmo mais, que é a nossa maior luta.
A fala de Rico certamente se aplica, de diversas maneiras, a muitas pessoas que estavam presentes no CoMA. Para muitos, o festival foi o primeiro grande evento desde o início da pandemia; a luta interna, tão presente na música do artista, e a catarse de deixar isso extravasar em meio a uma multidão é algo que só um evento desse tipo pode proporcionar. E era visível que isso acontecia naquele final de semana.
Se ainda havia alguma dúvida, a atração principal do evento era Gal Costa. Lenda da música brasileira, Gal reuniu o maior público do festival com folga; pela primeira vez em todo o final de semana, era difícil se locomover mesmo em locais um pouco mais distantes do palco. E, como era de se esperar, ela entregou tudo e muito mais.
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Com uma voz ainda bastante poderosa, Gal reforçou seu status de ícone e colocou muita gente pra chorar, tornando o show da Lamparina em seguida ainda mais especial. Afinal de contas, festival é sobre isso: cantar, gritar, pular, sorrir, chorar — tudo de uma vez, ao mesmo tempo ou separado — e se permitir sentir tudo que estava guardado há tanto tempo.
Obrigado por tudo, CoMA, e que você volte em 2023 mais forte do que nunca!