Por Melvin Ribeiro
O Primavera Sound ganhou o mundo em 2022, expandindo para edições em Los Angeles, São Paulo e Buenos Aires, mas teve problemas com sua edição local em Barcelona, numa maratona de duas semanas e com uma pequena parte do line-up se repetindo. Foi dos primeiros festivais europeus pós-pandemia, e choveram relatos de problemas.
Para 2023 o festival voltou a acontecer por uma semana, sendo os tradicionais três dias no Parc d’el Forum (mais o dia de abertura, de graça) e a programação pelos clubes. Na semana seguinte, com pouquíssima diferença, tudo deveria se repetir em Madrid, no mesmo parque que já abriu o Rock in Rio por lá. Infelizmente, a chuva impediu o primeiro dia por lá.
A expectativa era grande e pela primeira vez em dez anos os ingressos não esgotaram, uma constante dos disputados festivais na Espanha nesse verão. E o Primavera voltou a brilhar com força total.
Quem fechou a noite de abertura, de graça, foi o Pet Shop Boys, num show muito redondo, com o público (ainda mais velho nesse dia que na média do festival) cantando tudo. Teve todas as favoritas das pistas de dança (“It’s a Sin”), MTV anos 90 (“Being Boring”) e karaokês da vida (aquele medley esquisito e divertido de “Where the Streets Have no Name” do U2 com “Can’t Take My Eyes Off Of You”). A dupla Neil Tennant e Chris Lowe passa as oito primeiras músicas aparentemente sozinha, com amparo dos de boas projeções nos telões de Led (não menos que a obrigação nos dias de hoje), até passarem para o lado de trás da tela e revelarem três músicos de apoio. Showzão.
Dia 1: New Order, Turnstile e Blur
No dia seguinte começou a maratona pra valer. Comparecer ao Primavera Sound em Barcelona é entender que é humanamente impossível dar contas de todos os shows, por mais ou menos eclético que seu gosto seja. Quinze palcos e mais de 400 atrações, que se apresentam entre 5 da tarde e 5 da manhã. Alguns deslocamentos bem grandes no meio disso tudo. Papo de andar mais de dez quilômetros a cada dia. Papo de ver muito show bom e ainda ser surpreendido por alguns nomes desconhecidos ou recomendações de última hora de gente que você conhece ou encontra por lá.
Esse ano o palco Dice, um dos menores e mais afastados deles, trouxe uma escalação sensacional. Foi lá que o Built to Spill tocou no primeiro show do meu longo roteiro para a quinta-feira do festival. A banda de Doug Martsch é veterana por aqui e chegou de formação nova, com as incríveis Melanie Radford e Teresa Esguerra no baixo e bateria, e fez um set com músicas do disco mais recente When the wind forgets your name (que conta com o brasileiro Lê Almeida e sua turma como banda de apoio), e depois foi chegando nos clássicos, até a inevitável “Carry The Zero”. Nesse esquema em trio, cabe a Doug tentar ocupar o espaço anteriormente ocupado por três guitarras, e ele faz isso com alguma facilidade, abusando de uma mesa ao alcance da mão com vários efeitos, num clima mais viajadão/jam band. Melhor começo possível de maratona.
Subindo a escadaria ao lado do Dice a caminho do palco principal, passo pelo Ghost tocando no Amazon, um palco novo do festival, o maior depois dos principais. O show do Ghost está cheio mas provavelmente muito menos cheio do que eles andam pegando por aí em festivais mais ao estilo de som da banda. Ainda é dia, e o visual do palco fica ainda mais legal. Dá tempo de ver a cover de “Jesus He Knows Me”, do Genesis (fase Phil Collins), e partir pro palco Estrella Damm, a uns bons quinze minutos dali.
Hora do Turnstile, que tinha sido anunciado para 2020 que virou 2022 e perto da hora desmarcou. Provavelmente no ano anterior eles não estavam escalados para o palco principal, que o tamanho da banda mundo afora agora exige. Abre com “Mistery”, o som tá ótimo, a banda (com a nova guitarrista Meg Mills) vem com tudo e tem o público na mão. Quem não levantou o braço e gritou “and it’s been soooo long, is all the mistery goooone?” não esteve no festival. Seria obrigatório ficar até o final (até porque fecha com “Blackdown”), mas justo nesse horário um colosso do hardcore começava os trabalhos, lá de volta ao palco Dice. Era o Off!, em nova formação, com a garra de sempre, apresentando o disco “Free LSD”, um tanto prejudicado pela equalização. Nesse disco novo eles misturam os hardcores de sempre a improvisos de free jazz com direito a sax e tudo, mas na hora do show o HC volta a prevalecer, e é lindo ver Keith Morris em ação. Valeu a correria.
Finalmente um respiro para dar um rolê pelo festival e voltar com certa calma até o palco maior/principal, para o show do New Order. Essa escalação do Primavera, com alguns headliners muito voltados para os anos 80, vai bem ao gosto dos europeus. No dia seguinte seria a vez do Depeche Mode. O New Order começa com “Regret” e a todo o momento o público parece que vai decolar, mas lá pra metade da música cansa um pouco. Azar dele. Depois de “Blue Monday” e “Bizarre Love Triangle”, começo a fazer as contas pra saber qual mega hit sobrou para fechar, e eles vêm de “Love Will Tear Us Apart”, onde tudo começou pra eles ainda como Joy Division, e a surpresa é recebida com empolgação ainda maior pelos presentes.
Em menos de uma hora começaria o headliner da noite, mas não tinha como ficar ali esperando, por mais que os pés pedissem. Lá do outro lado, perto da entrada, no palco Ron Brugal, era hora do Le Tigre. O espaço já estava tomado antes do set do trio, coisa rara num festival onde você não para um segundo, e a excitação do público fazia sentido. Eu pelo menos achava que nunca ia poder assistir Kathleen Hanna na minha frente. Mesmo estando na terceira fila, o som parecia baixo demais, o que combina e não combina com o som lo-fi do grupo. No LED do fundo no palco rolavam videos preparados para cada música e uma exclusividade: as letras de todas as músicas. Caiu muito bem. Showzão, divertido e energétic e inspirador, provavelmente o melhor do dia. Destaque para “What’s Yr Take on Cassavettes” e “My My Metrocard”. No fim a banda finge estar começando a desmontar o palco, enquanto um introdução vai se revelando lentamente, até a ficha cair pra todo mundo que vai começar “Deceptacon”, que estamos no Primavera Sound, que a pandemia passou, que o Le Tigre tá ali na nossa frente e vai tocar seu clássico. Apoteótico.
São 2 da manhã e de lá aperto o passo de novo, e à distância ouço “There’s no Other Way”, a segunda do set do Blur, maior atração do dia e primeira já confirmada para as edições na América do Sul. Sem tocar desde 2015 (o Gorillaz de Damon Albarn esteve aqui no ano passado), o quarteto deu um jeito de fazer dessa mais do que apenas “outra reunião da banda”. Tem disco novo saindo, tem b-side antigo voltando pro set, e tem um cenário novo caprichado. A torneira dos hits vai abrindo aos poucos, até que surgem quase emendadas “Beetlebum”, “Song 2”, “Tender” e “The Universal” e a gente entende porque poucas bandas estão no mesmo patamar. Grande encerramento (ao menos pra mim) do primeiro dia de festival. Foram quase 10 horas de som. Deu pra ver todos os shows bem, de perto sempre que quisesse, sem filas para bebidas ou banheiro. O Primavera voltou!
Dia 2: Depeche Mode, Bad Religion e Kendrick Lamar
A maratona do primeiro dia de festival deixou marcas e cheguei mais tarde no segundo dia de Primavera Sound. Na chegada o Sparks já estava no Palco Amazon, o mesmo do GHOST na véspera. O festival estava um pouco mais cheio, principalmente na área dos palcos maiores, onde os fãs de Depeche Mode e Kendrick Lamar chegaram cedo e guardaram lugar. O Sparks não me convenceu muito – é um clássico, à sua maneira, tem toda a história, mas na hora H o som é Eurovision demais pro meu gosto.
E veio a hora do show do Karate no palco Dice. Karate foi, desde o anuncio, uma grande atração para poucos. Uma banda que mesmo quando em atividade, entre o fim dos anos 90 e o meio dos 2000, nunca foi muito aclamada. E o show do festival para muitos. Som cristalino, até meio alto demais mesmo, 13 músicas, uma hora de show, público completamente entregue. Como era de esperar, reações mais calorosas para “There are Ghosts”, “Small Fires” e “Sever”. Perfeito.
Do outro lado do festival, muito muito longe mesmo dali, o Depeche Mode entregava tudo, para um dos maiores públicos do final de semana, e guardou para o final uma sequência com tudo que um festival pode querer: “Enjoy the Silence”, “Just Can’t Get Enough”, “Never Let me down again” e “Personal Jesus”. Claro que não tinha tempo pra ser o show de 23 músicas da tour atual, mas cumpriu todos os requisitos mesmo com 5 músicas a menos. Grande pedida para uma edição brasileira. Voltando para o lado de cá, tinha o Alvvays tímido como seu som agradando bastante no palco “Plenitude”. A banda meio na penumbra, luzes meio que só mesmo na cantora Molly Rankin, indie como o Primavera Sound gosta de ser.
Tinha Kendrick Lamar no palco principal, e todos os relatos dão conta de como foi incrível, mas no meio do caminho tinha um Bad Religion no palco Cupra, e aí não deu pra evitar. Uma pedrada só. A banda sabe muito bem se colocar num festival, num público que a princípio não seria tão o seu, mas enche esse que é um dos maiores palcos. A abertura com “American Jesus” é o melhor convite para o show e quase uma covardia. A banda está bem demais no palco. E tome clássicos. De “Anesthesia”, “We’re Only Gonna Die (From Our Arrogance)”, “Do What You Want”, “Sorrow” até “Punk Rock Song”, “Come Join Us” (supresa do set?) e “Los Angeles is Burning”, um belo panorama oldschool e melhor show dos muitos que já vi deles. 40 anos de carreira, integrantes beirando e/ou passando os 60, e performance de jovens.
Passado o Bad Religion, uma surpresa ruim. Eram meia-noite e meia e pelas próximas horas quase não haveria guitarras pelos palcos. Ainda arrisquei um pouco do Goat Girl mas não desceu muito. O Kendrick já tinha terminado e a espera era pelo Skrillex. Seriam horas até um promissor Unwound num palco secundário. Tinha perdido Delgados e Japanese Breakfast por chegar tarde, e o Moldy Peaches por conflitos de horário, e não tinha sobrado nada mesmo sendo cedo para parâmetros de Barcelona. Hora de juntar energias para a maratona do último dia.
Dia 3: Surf Curse, War on Drugs e Måneskin
Maratona essa que começou às 5 em ponto de Sábado com o show de Domi & JD Beck, que tinham acabado de passar pelo Brasil. Belíssimo show, Domi chateada por terem levado seu celular na véspera e os dois brincando o quanto podiam com isso. Público chegando, assistindo sentado mesmo, clima espetacular, belo começo de último dia.
No mesmo palco veio o Surf Curse, carregados pelo carisma e energia inesgotáveis do baterista e cantor Nick Rattigan. Coeso, divertido, falta só aquele hit pra garantir verões e mais verões de festivais.
Depois era hora de finalmente visitar o Auditório, um espaço fechado para 4000 pessoas bem na entrada do festival, que funciona o ano todo. Momento obrigatório de conferir John Cale, ainda que lamentavelmente uma fila lenta demais tenha me feito chegar depois “Waiting for my Man”. O teatro tem outro clima, bem mais contemplativo, relaxado, e as 4 músicas que restavam do ex-Velvet valeram o passeio, encerrando com uma improvável de “Heartbreak Hotel”.
Hora de se deparar com mais um conflito: St Vincent x Laurie Anderson x Voidz x Gaz Coombes. Pela proximidade, dava pra ver um pouco dos dois últimos. O Voidz é uma banda pro Julian Casablancas se distanciar da sonoridade Strokes, o que não funciona tanto porque é sempre mais legal quando ele se aproxima da sua outra banda, como a abertura com a excelente “Did My Best”. Depois foi degringolando um pouco, e apesar do carisma do Casablancas ser um tanto enfeitiçante, valeu descer as escadas por uma última vez para conferir o show solo de Gaz Coombes, aquele mesmo do Supergrass, agora numa onda mais tranquila, meio country até.
Passado o conflito entre quatro shows imperdíveis, tentei ver o War on Drugs mas era tanta gente ali, no Amazon, que não deu pra entrar muito na viagem da banda. Depois um longo vazio e o Måneskin subiu ao mesmo palco, talvez deslocado demais meio às atrações anteriores. Mas show do Måneskin não tem muito como dar errado – a banda se entrega demais no palco sempre, e mesmo os movimentos mais coreografados descem bem. Era a melhor chance para repetir o cover de “I Wanna Be Your Dog” do Rock in Rio, mas não rolou. Hora de correr pro palco ao lado para o último show da maratona.
Death Grips é a experiência sonora que todo festival que se preze deveria ter. O “hip hop experimental” que a wikipedia deles estampa nem começa a definir o som do grupo, ainda mais ao vivo, quando toda a energia e entrega do baterista Zach Hill se destacam. MC Ride é outro monstro no microfone. A banda toda na penumbra, fundo de palco vermelhíssimo, público quicando hipnotizado às duas da manhã, o tal do pogo sem violência.
Não tem jeito melhor de dizer adeus ao Primavera Sound 2023 em Barcelona. Que venha a edição do final do ano em São Paulo!