Hermeto Pascoal é um dos músicos mais icônicos e influentes do cenário musical brasileiro com reconhecimento nacional e internacional, o que mais que justifica sua presença no line-up do The Town. Ao mesmo tempo, um festival de público majoritariamente jovem e interessado em música pop teve uma surpresa ao se deparar com o “Bruxo dos Sons” no palco São Paulo Square no dia 02.
Isso porque a música de Hermeto é feita de nuances. Sua banda competente até tem partituras, mas o clima no palco é de liberdade criativa – a mesma que vem guiando sua carreira desde que nasceu em Lagoa da Canoa, Alagoas, há 87 anos.
Pascoal é conhecido por sua genialidade musical e sua capacidade de transcender os limites dos gêneros musicais. Sua carreira notável abrange mais de seis décadas. Desde jovem, Hermeto Pascoal mostrou um talento inato para a música, começando a tocar acordeão aos 8 anos de idade. No entanto, foi com a flauta e o piano que ele se destacou como um virtuoso. Em 1961, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde se tornou parte integrante do movimento musical emergente da bossa nova e da música popular brasileira. Trabalhou com músicos renomados como Elis Regina, Geraldo Vandré e Edu Lobo.
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Hermeto Pascoal é conhecido por sua abordagem inovadora à música. Ele é um mestre da improvisação e da experimentação sonora, explorando uma ampla gama de estilos, desde jazz e música de câmara até música folclórica brasileira e música étnica. Seu álbum de 1976, Slaves Mass, é uma obra-prima experimental que exemplifica sua busca constante por novos sons e ideias musicais que guiam sua carreira até hoje.
Além de seu trabalho como músico, Hermeto Pascoal também é um compositor prolífico. Suas composições são caracterizadas por sua complexidade harmônica e rítmica, desafiando os intérpretes a explorar novos horizontes musicais. Tanto que, há anos, suas músicas são totalmente isentas de direitos autorais, conforme comentamos na primeira entrevista que ele deu ao site.
A longa carreira de Hermeto Pascoal foi reconhecida com inúmeros prêmios e homenagens, incluindo o Grammy Latino de Excelência Musical em 2019. Essa lenda viva da nossa música conversou novamente com o TMDQA! às vésperas de subir ao palco do The Town e mostra como continua promovendo uma música livre e sem fronteiras. Confira o papo abaixo:
TMDQA! Entrevista: Hermeto Pascoal
TMDQA!: Hermeto, primeiramente, é um prazer estar falando com você.
Hermeto Pascoal: Da mesma forma, muito prazer também!
TMDQA!: Muito obrigada. Eu vi que você está com uma agenda cheia de shows, o que é ótimo, se mantendo na ativa. E está chegando o seu show no The Town, um dos maiores eventos do país. Vai ser literalmente grande, no autódromo de Interlagos! E eu estava pensando que a sua música é muito dos detalhes, do improviso, depende muito da atenção do público para captar as nuances. Eu queria saber como funciona quando você se apresenta num evento de grande porte, que é mais difuso… se torna um desafio pra você, criar essa conexão com o público ali?
Hermeto: Não, porque eu praticamente não sei como vai ser o show. Na hora que eu entro no palco com o grupo é que todos nós nos integramos naquilo que nós vamos fazer. Cada um fazendo à sua maneira, cada um criando do seu jeito. Grupo é assim. Mesmo com as músicas escritas, a criatividade está pairando em cima daquilo ali. Então cada show é uma história, é uma surpresa. Sempre é, porque o público é sempre maravilhoso. E eu tenho certeza que cada pessoa pensa de uma maneira diferente, porém semelhante.
TMDQA!: E a música é essa conexão, né Hermeto?
Hermeto: É o que eu chamo de música universal. A música universal cada pessoa escuta da sua maneira de ser, porém semelhante. No mundo, tudo é semelhante. Por isso acontece tanta coisa errada no mundo, e a gente se esquece da semelhança. Confunde semelhança com ser diferente.
TMDQA!: A impressão que eu tenho é que a música instrumental está ganhando espaço no Brasil. Não sei se você também tem essa percepção. Você sente que o seu público está rejuvenescendo?
Hermeto: Quando eu comecei, já achava assim. Já começamos lotando teatros. O público aderiu à música universal, eles perceberam que iam sentir o que quisessem sentir. Eu nunca fiz música pra botar um estilo, para que as pessoas sentissem a mesma coisa. Deus me livre, ave Maria! Cada um tem a sua personalidade e sua maneira de ser, cada um que está no auditório. Ao escutar um disco meu há uma liberdade universal, porque é a música universal.
TMDQA!: É isso aí. Eu estava pensando também que a sua música tem um estilo de contação de história. Mesmo quando não tem letra, às vezes só de ler o nome da música você já consegue imaginar uma historinha na sua cabeça! Como você pesca esses causos assim, pra preencher as histórias da sua música?
Hermeto: Você está dizendo já. Se fosse outra pessoa falando, não teria a mesma percepção que você. Dentro da semelhança, é aquilo que eu falei. As coisas universais são sempre semelhantes. O que isso quer dizer é que as suas perguntas são tão inteligentes que já são confirmações daquilo, você apenas está querendo ter certeza do que você pensou. E isso é muito maravilhoso, pra mim é muito bom que você fale isso aí.
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TMDQA!: Eu fico feliz que a gente está nessa sintonia. Agora, todo mundo se espanta, Hermeto, com a sua inventividade, a sua capacidade de achar música em todos os lugares. Parece que é só aí que a gente nota que a música realmente está à nossa volta o tempo todo. Eu queria saber de você: nós, pessoas comuns que não são artistas, como podemos desenvolver essa sensibilidade de encontrar beleza à nossa volta?
Hermeto: Ah, você já desenvolveu. Você é que não acredita. O grau de jornalismo que você está fazendo… Porque pra mim o jornalismo é música. Pra mim, um grande jornalista é um grande solista. Os instrumentos são convencionais, o próprio nome já diz. O maior instrumento é o corpo de cada um, porque a alma é que traduz tudo que a gente imagina quando a gente recebe do universo. Por isso que eu chamo de música universal. Conversando com você, pelas perguntas… a gente espiritualmente sente o nível. É uma coisa muito celestial. Você é uma pessoa muito especial. Parabéns pelas suas perguntas, por tudo.
TMDQA!: Que isso, ganhei o dia agora.
Hermeto: É verdade, pode acreditar.
TMDQA!: Agora, Hermeto, a sua música é muito de encontro, né? Muita coisa foi gestada trocando ali com os seus amigos, o Itiberê, o Carlos Malta, aqueles ensaios com a turma toda. Você ainda abre a sua casa pra receber os músicos e o que esses encontros te ensinam?
Hermeto: Não, porque não tem tempo. Aquilo ali foi uma preparação, também universal. Justamente porque o Carlos Malta e todo mundo que tocou no grupo, Itiberê Zwarg, cada um tem seu trabalho, num nível tão interessante quanto o nosso. Uma coisa linda, cada um da própria maneira, do seu jeito. No grupo, ninguém aprendeu a imitar o outro, a fazer igual o outro que está tocando a mesma música. Sempre fazer a interpretação para além daquilo que está escrito. Nas minhas músicas, eu sempre disse, mesmo que escrevesse para orquestra, pra sinfônicas, eu nunca botei na partitura muita coisa, nuances. Onde vem escrito assim “adágio”, “andante”, “allegro”, não sei o que. Eu não botava isso, quando o músico está pensando no allegro, ele não está alegre, está tenso, confuso. Então liberdade total.
TMDQA!: Tá certo. Falando em liberdade total, está fazendo 15 anos que você liberou suas músicas, as partituras para serem estudadas, regravadas. Como tem sido pra você ver as novas gerações estudando seu trabalho, regravando e dando a sua própria leitura?
Hermeto: Sensacional! As crianças… Tem lugar que eu não vou, e aí vai meu filho, que é percussionista, que toca no grupo desde que começou a falar (risos). A música que eu chamo de universal até nisso ela é fácil de cada um expor a sua maneira de ser, de se expor. Assim como você está perguntando coisas que você sente sobre a minha música, você sabe que não é só tocar um instrumento que te torna músico. Ser músico é ser música. Você é música. O que tem de jornalista maravilhoso, eu sempre chamei de músicos. Eles riem, falam “que isso, que isso”. A admiração que você está tendo comigo, eu também estou tendo com você. Essa é a história.
TMDQA!: Que demais isso. E falando da música no Brasil, o seu tipo de música é ainda restrito porque alguns segmentos da sociedade ainda o elitizam. Colocam em salas de concerto, por exemplo. Eu fico pensando: como a gente pode mostrar para o público que a música instrumental também pode ser popular? Porque você faz música para o povo, né?
Hermeto: Sim, mas pelo contrário, você não me vê tocar no Municipal. Só se for um negócio, de um amigo grande, que tem muita força lá dentro, que me convide pra fazer um show no Municipal. Faz tanto tempo de show assim que eu nem me lembro. O que assusta é justamente que quando eu comecei, o povo já aderiu à minha música, porque ela é minha só no nome, é deles também. Ninguém vai assistir um show meu sabendo o que vai escutar, só que vai escutar música. Cada um escolhe a sua maneira de escutar. O público é tão maravilhoso que, se eu tiver um show amanhã, eu já sei que está lotado. É uma coisa que só Deus explicaria.
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TMDQA!: Agora Hermeto, são 87 anos de carreira, desde a sua grande estreia nos palcos da vida. O que te mantém com vontade de continuar?
Hermeto: Me mantém porque eu sou espiritualista. Minha alma não vai ter lugar pra ficar no meu corpo, esse corpo aqui já está se desmanchando, é normal. Eu aliso ele, boto um negócio em cima dele. Meu cavalinho… meu corpo é meu cavalinho (risos)! Toco meus instrumentos, mas eu digo pra você: eu sou totalmente intuitivo, porque nasci música, nasci músico. Até os 15 anos eu não tinha luz elétrica na minha terra, e eu não achava nada ruim. Quando chegou a luz é que eu achei ruim, me incomodava na vista até (risos). Eu me mudei, eu saí de Lagoa da Canoa com 15 anos de idade e já fui pra Recife. E já fiquei igual tô aqui conversando com você (risos).
TMDQA!: É uma longa estrada, né Hermeto?
Hermeto: Exatamente.
TMDQA!: Agora só pra gente encerrar, eu estava reouvindo o “Hermeto Pascoal E Sua Visão Original do Forró”, que foi um álbum seu que ganhou o Grammy, um disco de 2018. E ele termina com uma música que se chama Isso É Brasil. Agora passados 5 anos, eu queria saber o que é o Brasil pra você hoje.
Hermeto: Eu tenho uma música com esse nome de Brasil Universo. O Brasil é o mundo. O Brasil é o país mais colonizado. Como te falei, eu não estudei nada de teoria e nem nada. Mas na minha maneira de sentir, eu tenho um sentir tão maravilhoso, que eu imagino que o Brasil tem gente de outros países aqui, de todos os jeitos, de todas as idades. Quando eu saio pra tocar fora, eu não sinto que estou fora, sinto que estou tocando em algum lugar maravilhoso – todos os lugares são maravilhosos. Então o que dizer do país onde eu deito, onde eu durmo, onde eu descanso, onde eu estudo? É uma maravilha isso. Brasil é Brasil!
TMDQA!: Sorte a nossa que Hermeto é brasileiro. Obrigada por essa conversa e com certeza vamos te ver muito tempo brilhando nos palcos.
Hermeto: E eu vou te dizer uma coisa: as próximas gerações vão acabar com esse negócio de brasileiro. Vai ter o universo. Vamos falar sempre em universo. A documentação de todos os países vai ser uma só, nem vai precisar. É só olhar e pronto. Deus não quis essa coisa de documentação, de separação, nada disso. Mas a música salva. Fica com Deus e parabéns pelas suas perguntas.