Não basta ser fã, tem que ser super. Essa, pelo menos, é a nova máxima que vem guiando algumas ações da indústria da música para fidelizar os seus clientes mais dedicados.
O termo superfã se tornou uma buzzword no meio da música ao longo dos últimos meses, e não é difícil entender o porquê. Os principais atores do mercado – as gravadoras – notaram um grupo seleto que prioriza a aquisição dos produtos oficiais de seus artistas favoritos, paga para ser membro do fã clube, compra um vinil de cada cor e ainda vai ao show na pista premium.
Não que seja um movimento recente: não é de hoje que artistas e bandas desenvolvem produtos especiais e vendem pacotes VIP para meet and greets antes dos shows. Também não se trata de um grupo especialmente rico, e sim de jovens já presentes no mercado de trabalho que dedicam sua renda e limites de cartão de crédito a apoiar seus artistas favoritos.
O potencial mercadológico desse grupo enche os olhos da indústria da música, desde as gravadoras ocidentais às empresas sul-coreanas que gerenciam os mais badalados grupos de K-Pop. Na era dos ingressos com preços cada vez mais salgados e taxação de algumas importações, os superfãs vêm mostrando que ainda há espaço para crescimento.
Grandes players já se movimentam na direção dos superfãs. Apps voltados especificamente para seu engajamento são uma realidade, com vendas que contam diretamente para os números da Billboard; outros ainda estão em desenvolvimento, conforme já adiantou o Warner Music Group.
Embora seja um investimento embasado por muitos números, a construção de uma base de fãs vai muito além de métricas e resultados: é a consequência do desenvolvimento de uma identidade artística que ressoa com muitos. E de um mergulho em variadas linguagens, expressões e culturas. É assim que brota a arte, o único caminho possível para chegar à etapa seguinte: a consagração.
Para entender esse fenômeno, o TMDQA! conversou com Dani Ribas. Ela está à frente da Sonar Cultural Consultoria e é Doutora em Sociologia pela UNICAMP. A partir de sua tese, Ribas criou o método ID_MUSIQUE – Fanbase além do algoritmo, que em 2021 ganhou o prêmio Inovação Empresarial FFC. Em 2022, foi mentora convidada da WOMEX e ganhou o prêmio WME na categoria Profissional do Ano.
Em 2023, ganhou o Prêmio Profissionais da Música na categoria Projeto de Pesquisa: Techs, Algoritmos e Segmentação de Público. Foi consultora da UNESCO e do Mercosul Cultural, foi pesquisadora do CPF-SESC SP, foi diretora de pesquisa do DATA SIM e fez pesquisa em Economia Criativa para o IPEA. Para completar, ainda é professora de music business em diversas instituições, colabora com a Mídia Ninja, e é consultora de planejamento e gestão de carreira na música, com base em análise de dados e tendências de comportamento de público.
Ou seja: Dani está mais que capacitada para nos ajudar a compreender o que está por trás desse movimento. Afinal, o que ele significa para os fãs, os músicos e os executivos do mercado?
Confira nosso papo abaixo!
TMDQA! Entrevista: Dani Ribas
TMDQA!: Oi Dani! Em entrevista ao podcast Podclav, você salientou que comportamentos associados aos fãs atualmente – interagir nas redes sociais, fazer pré save, dar stream – na verdade não fazem tanta diferença na conta do artista. Quais ações iriam de fato apoiar um artista nesse momento atual?
Dani Ribas: Consumo direto, ao vivo principalmente. Mas veja que só isso não adianta, pois nem todos fazem shows. Nem todos estão num momento de carreira em que há demanda suficiente para shows. O circuito de consagração é complexo, é show não vem antes da consagração. Há uma retroalimentação entre o circuito de shows e a consagração, e por conseguinte o aumento da demanda. Minha tese de doutorado em Sociologia foi sobre essa articulação entre todos esses pontos, que exploro no método ID_MUSIQUE e nos meus cursos.
Mas voltando à pergunta: quando 1. o ecossistema da música se tornou em apenas um artifício para as Big Techs capturarem nossa atenção, para 2. transformarem nosso comportamento digital em dados, para 3. nos transformar em audiência segmentada para nos venderem anúncios … não há como apoiar um artista sem deixar no caminho um pedágio alto para as techs. O sistema se transformou, música é commodity, e nesse momento qualquer artista que queira construir uma relação próxima com os fãs vai precisar usar a estrutura digital. Muitos veem isso como “oportunidade”. Eu vejo isso como “gaiola”, pois tendo em vista a quantidade de artistas que existem, são muito poucos os que realmente conseguem usar essa estrutura de maneira rentável – isso sem falar em saúde mental.
TMDQA!: Dizem que a indústria está se movimentando para fazer dessa “tendência” do superfã uma prioridade. O que já temos de concreto e que aponta para um comprometimento real das grandes gravadoras com as fanbases?
Dani Ribas: Vamos aguardar, ainda não há nada de concreto. Há apenas notícias em investimentos em plataformas digitais com outro social graph, diferente das mídias digitais.
TMDQA!: A popularização do termo “superfã” coloca pressão em ambos os lados – o artista precisa entregar cada vez mais, e quem acompanha seu trabalho tem que se comprometer com muito. Esse é (mais) um sinal da precarização do trabalho no mercado da música?
Dani Ribas: O próprio termo “entrega” é sinal dessas mudanças de estrutura do ecossistema musical que apontei acima. Artista não “entrega”, artista cria e se dispõe a um escrutínio coletivo e mais ou menos imprevisível chamado consagração (que tem a ver mais com processos do que com entregas). Enquanto a gente insistir em entregas, elas nunca serão suficientes para o sistema de entrega algorítmica, pelo simples fato de que pessoas não são máquinas. Tem horas que devemos dizer o óbvio: pessoas são pessoas e passam por processos criativos que têm maior ou menor poder de intuir e traduzir o mundo, de ser relevante para pessoas (os fãs), e de se consagrarem como símbolos do espírito do tempo. Resumir esse processo todo a “entregas” é sucumbir ao jogo em que o artista é apenas uma peça descartável e substituível por outro que tem uma “entrega” mais veloz. Então não é apenas uma precarização (todas as relações de trabalho foram precarizados por mudanças legislativas, tecnológicas e sociais). É uma mudança de paradigma que precisa ser compreendida em sua complexidade. Olhar para a questão do “superfã” é apenas parte desse processo.
TMDQA!: Como os artistas podem diversificar suas entradas para não depender, quase que exclusivamente, dessas relações construídas à distância?
Dani Ribas: Antes de pensar em “entradas” e “entregas”, o artista precisa entender as variáveis que interferem em seu processo de consagração – não há como entender isso sem pensar em identidade (que não é branding), em público (que não é alcance), e nicho (que não é gênero musical). É entender a demanda, os desejos e sentimentos das pessoas, e não pensar apenas na oferta ou na “verdade” do artista. Não existe “verdade”. Arte é dúvida, e não certeza. As entradas virão quando ele se tornar relevante pra um nicho, ainda que pequeno. E a relevância tem a ver com o outro, com o que o outro diz de mim. Enquanto artistas focarem em si mesmos, e não no outro, nos desejos e sentimentos do outro, não haverá nem relevância nem receitas. Artistas deveriam ser especialistas em seres humanos, não em algoritmos. É uma inversão que tem afastado artistas de seu ofício.
TMDQA!: Que dica você dá aos artistas que estão iniciando agora e precisam construir sua base de fãs de forma genuína?
Dani Ribas: Música não é apenas querer fazer música. É desenvolver as múltiplas habilidades sensíveis que transformam as coisas cotidianas em símbolos que se tornam relevantes para a coletividade. E isso requer tempo, dedicação. Então estude a coletividade e todas as suas formas de expressão. Pesquise o acervo cultural da humanidade, outras linguagens artísticas, adquira repertório vasto e complexo, incluindo as diversas ciências humanas (que falam sobre as questões humanas). Entenda que não é a SUA “verdade” que importa, mas sim o universo sentimental e existencial dos outros à sua volta. Inverta essa perspectiva que transforma música em vontade do ego em dizer uma “verdade” absoluta. E entenda que não há imediatismo nisso tudo. O mundo não é a velocidade do algoritmo.