"Um Beijo do Gordo"

Jô Soares foi desaforado como músico e comentarista esportivo

Cobertura da Copa do Mundo em 2018 e discografia desaparecem de recém-lançada série em homenagem ao apresentador

Jô Soares na capa do disco "Capitão Gay"
Eliezer Motta e Jô Soares (à direita) na capa do disco Capitão Gay | Reprodução

Por Helcio Herbert Neto

Há um sentido em tudo o que Jô Soares (1938-2022) produziu em vida – o humor. Pelo menos é a partir dessa ótica que o artista propõe que sejam lidos, acompanhados e assistidos os rastros que deixou antes de sua morte, que completa dois anos em 5 de agosto e motivou a série da Globoplay Um Beijo do Gordo. A produção se concentra nas passagens como apresentador, seja de talk show, seja de programas de comédia. Mas em outras expressões populares o artista se mostra igualmente atrevido.

Desde os anos 1960, Jô colocou em circulação canções que exploraram ao mesmo tempo os ritmos das paradas de sucesso e uma incontrolável capacidade de fazer piada. O exemplo de “Vampiro”, lançada em 1963, é simbólico: ao som de rock’n roll, a letra embala as tramas de um vilão com cheiro de fumaça de lambreta, topete e costeletas. Nada de particularmente novo. No limite da comédia, Chico Anysio e Juca Chaves também chegaram às lojas especializadas com álbuns ou singles cuidadosos e bem-humorados.

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Até a poesia de Fernando Pessoa fica divertida em Remix_Em_Pessoa. O humor delicado do escritor português é gritante no disco – um dos raros à disposição em streaming. A presença digital é errática, a ponto de seus trabalhos mais revestidos de seriedade não constarem nas plataformas. A exemplo de Jô Soares e o Sexteto, de 2000, que traz versões de ícones do jazz, como Ellington e Gershwin. Ainda assim, as apresentações jazzísticas com os instrumentistas que acompanhavam as gravações das entrevistas no estúdio eram repletas de brincadeiras. 

Até o Capitão Gay, personagem que instigou o masculinismo da ditadura em vigor ainda nos anos 1980 no Brasil, parou nas prateleiras dos discos – o herói é mencionado na série da Globoplay. Lado a lado com o humor, as provocações se espalhavam pelo que carregasse a assinatura do artista. A ponto de, às vésperas da derrubada da presidenta Dilma Rousseff, o Programa do Jô ter visitado o Palácio do Planalto. Foi uma das raras aparições em TV aberta daquele alvo vivo de tamanhas acusações à época.

O convite a Dilma causou tensões no Grupo Globo e nem aparece em Um Beijo do Gordo. A fugidia passagem de Jô Soares pelo Fox Sports também não é citada. Depois da dispensa da maior rede de televisão do país, passou à condição de comentarista esportivo em Debate Final: Especialistas, durante a cobertura da Copa do Mundo de 2018, na Rússia. A participação fixa soava exótica, porque o programa reunia treinadores com longa experiência no futebol profissional. Estar em minoria não o intimidou.

Com a derrocada da seleção nacional e as piadas em torno das quedas de Neymar, Jô Soares incentivou a atualização dos técnicos brasileiros. O fervor patriótico, típico dos períodos de Mundial, tumultuou o debate. Multicampeões como Vanderlei Luxemburgo e Abel Braga entenderam a declaração como um ataque aos treinadores – em reação que exalava corporativismo. O resultado foi a subida de tom, um mal-estar e a ofensiva contra o único comentarista que não ia aos estúdios para as transmissões. 

Já com problemas de saúde, Soares, torcedor do Fluminense, participava da sala de casa: suas imagens eram projetadas no telão. Apesar de também ter sido coautor do emblemático livro A Copa que ninguém viu e a que não queremos lembrar, com Armando Nogueira e Roberto Muylaert, nunca mais atuou como comentarista. Nos dois volumes de O Livro de Jô, último lançamento editorial do escritor, o apresentador de Viva o Gordo! descreve o clima pesado que pairava sobre Debate Final: Especialistas

As observações durante a cobertura do Mundial, contudo, anteciparam mudanças pelas quais o futebol brasileiro realmente passou. O técnico português Jorge Jesus foi contratado pelo Flamengo em 2019, conquistou o Campeonato Brasileiro e a Libertadores da América no mesmo fim de semana e desencadeou transformações nos clubes do país. Virou tendência: as atualizações, reivindicadas ao vivo no Fox Sports, fizeram com que experientes nomes perdessem espaço para estrangeiros. 

Outro caso significativo é o de Abel Ferreira. Também de Portugal, o treinador está desde 2020 à frente do Palmeiras e colecionou os principais títulos em disputa no Brasil. Fica evidente que a piada não tem só como finalidade entreter, divertir. A palavra cantada ou falada por Jô Soares demonstra que rir permite até rasurar o controle dos poderosos ou o status quo. O grande apelo da música popular e do futebol faz com que essas provocações cheguem a mais pessoas, causem incômodos. Ninguém passa ileso aos desaforos.    

Helcio Herbert Neto (@exarrobasom) é autor do livro Palavras em jogo: Comentário esportivo no Brasil (2024). Atualmente, realiza pesquisas sobre cultura popular em âmbito de pós-doutorado no Departamento de Estudos Culturais e Mídia da UFF, instituição pela qual também se tornou mestre em Comunicação. Professor e doutor em História Comparada pela UFRJ, é ainda formado em Filosofia (UERJ) e Jornalismo (UFRJ). 

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